quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Entrevista com Sofia Favero

Este texto (um pouquinho longo) é uma entrevista detalhada que eu adorei ler - por isso reproduzo abaixo - com Sofia Favero, criadora criadora da página no facebook Travesti Reflexiva (https://www.facebook.com/TReflexiva?ref=stream&fref=nf)


"A sergipana Sofia Favero Ricardo é o rosto da nova geração de pessoas trans engajadas na luta contra a transfobia e o machismo. Aos 21 anos, a estudante de psicologia encabeça a fan page “Travesti Reflexiva”, que soma mais de 72 mil curtidas, e ajuda muita gente. 

"No mundo de Sofia", a rede social é ferramenta para filosofar sobre cotidiano, preconceitos e superações. E, assim como o livro que empresta o seu nome, também recebe mensagens vindas de todos os cantos. Algumas que ressaltam a importância de seu papel e outras anônimas encharcadas de ódio.

Sofia defende a palavra “travesti”, é humorada, temperamental, tem senso crítico e carrega na linda existência o melhor do feminismo - mesmo que para isso tenha que bater de frente com feministas cis radicais e ser expulsas de grupo. Claro, ela costuma tocar em feridas abertas.
Neste ano, tornou-se manchete devido ao assédio e agressão que sofreu dentro de um ônibus. Também se tornou estatística. O texto que escreveu sobre o episódio ultrapassou as barreiras do grupo e iluminou a transfobia de cada dia.

Ao ser convidada para um bate-papo com NLucon, brincou: “Agora, sim, sei que estou conhecida de verdade”. E nos proporcionou uma entrevista sincera e repleta de conteúdo.Confira

- Travesti Reflexiva é um sucesso e tem mais de 72 mil curtidas. Como surgiu a ideia de abrir um espaço para a reflexão sobre o grupo? Qual é a proposta? 

Surgiu quando eu vi que havia uma carência de conscientização do que é ser travesti e transexual na realidade brasileira. Quando eu falo “realidade” quero explicar para o senso comum que as pessoas transgêneras são tão comuns quanto qualquer outro ser da população. As pessoas que me conhecem levam um choque a princípio, mas depois param e pensam: “Sofia é tão previsível, ela é como eu”.

A sociedade criou essa ideia de que pessoas transgêneras são quimeras, bichos de 7 cabeça,personagens de algum filme terror… E não é nada disso. O meu intuito sempre foi esse, mostrar aquilo que me fazia rir, chorar, pensar… Como qualquer outra pessoa, o que me diferencia da sociedade é a falta de oportunidades e o preconceito. O estigma que uma travesti carrega é muito pesado para ser de conhecimento somente dessa classe, é preciso que a sociedade veja com os olhos dessas pessoas o que é sofrer transfobia.

- A internet e, sobretudo, as redes sociais mudaram um pouco a maneira de se fazer militância, de ser ativista e até de se entender. Qual é o lado positivo dessa ferramenta na luta contra a transfobia?

Eu tenho a liberdade para expor aquilo que penso, não preciso de alguém mediando ou podando a minha fala… Creio que seja uma ferramenta extremamente eficiente, dado que o alcance do Facebook é enorme.

E o negativo?

Existe sim o lado negativo, existem pessoas dentro do próprio movimento transgênero que são totalmente hierárquicas e que banalizam o sofrimento da travesti, que é compulsoriamente obrigada a se prostituir. Existe uma vertente do movimento feminista que encara a travesti e a transexual como antagonista e de quebra ainda tem o movimento gay - também conhecido como LGBT - que finge lutar por políticas públicas, mas só “cede” atenção para as pessoas trans* por meio de petições. Então a minha luta é praticamente contra todos (risos), chega a ser deprimente não conseguir sair do próprio prisma para alcançar a sociedade.

- Você acredita no ativismo virtual como forma de revolução?

Não acreditava até receber incontáveis mensagens de todos os tipos de pessoas me contando como mudei a visão delas sobre o que era ser travesti. Mas eu nunca fiquei apenas no virtual. Participei esse ano da construção da MDV - Marcha das Vadias daqui de Aracaju, que agora é interseccional, estou com quatro visitas marcadas para palestrar em universidades em três regiões do Brasil.

Também faço parte de uma ONG - AMOSERTRANS (Associação e Movimento Sergipano de Travestis e Transexuais) que acredita que o bem estar da população Transgênera não é apenas distribuir camisinha e gel como algumas instituições acreditam. E estou aberta a novas possibilidades, só tenho 21 anos! Tenho mais 40, 50, 60 anos pela frente - isso se a transfobia não por um ponto final na minha vida antes disso.

- Fazendo um paralelo com nome da fan page, quais são as reflexões que o grupo trans passa atualmente? A revista Time declarou que o grupo será o próximo assunto a ser discutido socialmente, assim como o racismo e homossexualidade foram/são. Concorda? 

Concordo, e acho que  agora é a hora que os oportunistas irão aparecer. Milhares de pessoas cisgêneras tratando pessoas transgêneras como ratinhos presos na caixa de skinner. Não vejo um tratamento humanizado quando essa classe - a maioria acadêmica - procura saciar a sua fome de entendimento - raso - sobre a transgeneridade. É preciso que as pessoas transgêneras tenham voz!
Se eu não falar por mim, enquanto mulher transexual ou travesti, aquilo que me aflinge, quem poderá? Um pesquisador? Um estudante que quer fazer um TCC sobre uma cirurgia? Uma cirurgia é uma gota de preocupação no oceano de transfobia que eu estou submersa. Penso que agora seja a hora da sociedade abaixar a caneta e parar de estudar as pessoas transgêneras como doentes, é preciso escuta-las.

- O que as pessoas cis ainda precisam saber sobre as pessoas trans?
Bom, falo por mim e sobre mim, o que as pessoas precisam saber sobre mim. Não posso falar por todas as pessoas trans. A sociedade precisa saber que eu não almejo uma cirurgia acima do bem e do mal, é preciso tirar o foco da superficialidade - já que pro meio social a transgenitalização é uma futilidade, um artigo de luxo! - e entender primeiro porque “Ser Travesti” é um crime tão grande”.

 Vivemos em um pais em que ser chamada de Travesti é pejorativo. Mulheres cis falam umas para as outras “Aquela ali tá tão feia que tá parecendo um traveco!” E não entendem - ou fingem não entender - o tamanho da transfobia que há nessa frase. Existe beleza na Travesti! Existe beleza na dor, na rejeição, na exclusão…

Tudo isso me tornou em quem eu sou, me fez lutar contra a opressão. É como se eu tivesse sido marcada com ferro quente e fosse culpada de alguma atrocidade muito grande. Uma simples ida ao supermercado já é um dano emocional para uma pessoa trans! É incrível como nenhum espaço é saudável para essa classe.

Explica melhor, por favor. 

As chacotas são constantes em qualquer ambiente. Lembro da época em que eu não havia mudado o meu nome judicialmente e os professores cisgêneros se recusavam a usar o nome social, eu saia da faculdade pensando em pular na frente de algum carro para acabar com aquele sofrimento. Uma pesquisa do ArtivismProject.com afirma que 3 em cada 5 pessoas trans irão tentar se suicidar ao longo da sua vida, e não é pra menos! São agressões familiares, sociais e subjetivas! Todas as instituições - inclusive o estado - te ensinam a se odiar a partir do momento que coloca em um livro de biologia que você não existe! “Só existe homem com pênis e mulher com vagina, você é um erro da matrix.”

- Antes de continuarmos, você se define como travesti e diz não ter medo da palavra. Por que escolheu esse termo para falar sobre si? Acha que muita gente se diz “transexual”, “transex” - hehe - ou “trans” como maneira higienizadora?  

Eu penso que a maioria se identifique como transexual como uma tentativa para sanear a própria imagem. O estigma que a Travesti carrega é tão grande, essa palavra é tão pesada, que até a minha família me corrige quando eu digo que sou travesti. Recentemente minha irmã rebateu “Você não é Travesti! Você é transexual!”, porque isso foi o que a sociedade e a medicina plantaram na cabeça do senso comum.

Que há uma classe superior - a de transexuais. Eu encaro que a travesti passa por uma graduação - financeira - quando passa a se enxergar como transexual e não mais como travesti. A identidade “travesti” está muito mais ligada ao gueto e a periferia que a identidade “transexual”.

- Você diz que quem é bem sucedida não quer mais ser travesti, é isso?

Ninguém quer ser referenciada como travesti - por mais que seja! Não importa o seu grau financeiro, estético e cultural. Passei então, a perceber a carga transfóbica que isso trazia dentro do próprio movimento que faço parte, e a me identificar como travesti. Em lugares que vou me apresentam como transexual de uma forma extremamente politicamente correta, um termo não me assusta e não assustaria as outras se o estigma e a transfobia não fossem tão gritantes. Uma palavra não me agride, pessoas sim.

- Digitei “Travesti é” no Google e os resultados que completam a frase envolvem crimes e assassinatos. Como é pertencer a um grupo que tem a própria existência questionada?

É uma situação bem depressiva, eu sempre achei que não me prostituir iria me isentar de sofrer agressões físicas, e estava enganada. Ser travesti é considerado um crime, um crime sem necessidade de julgamento, o análise é instantânea, é logo no olhar que se dá o parecer de criminosa. Cresci acompanhando minhas amigas morrerem e serem esfaqueadas, chegou em um ponto que quando vejo alguma travesti aparecer com uma tatuagem nova… Eu já sei que ela tatuou para esconder alguma cicatriz de facada. Se acostumar com isso é desumano.
- Recentemente, há uma grande briga de grupos de travestis que rejeitam a palavra guarda-chuva “transgênero”, de grupos de transgêneros que combatem o binarismo de transexuais. E os ataques pessoais são constantes entre pessoas trans na internet. Você acha que falta união e entendimento para as diversas vivências trans? 

Eu acho que falta é boa vontade de ambos os lados. De um ponto de vista, existem alguns transgêneros que transicionaram tarde, e se favoreceram de toda uma vida cisgênera. Aceitem ou não, é uma realidade - com todos os privilégios que essa classe possui, seja na educação, na saúde, na família e etc… E que abomina a hierarquia de gênero - assim como eu! - mesmo que essas pessoas se considerem superiores por terem diplomas - criando assim, uma hierarquia academicista. Pergunto, então, onde há coerência nesse tipo de discurso?

É preciso se atentar que o nível de evasão escolar da travesti e da transexual é berrante! Como cobrar que essa classe estude se a própria instituição, profissionais que atuam nela e alunos irão chama-la por um nome que ela abomina? E ai do outro ponto de vista, existem pessoas marginalizadas e excluídas da sociedade que precisam de um amparo mais urgente do que essas outras pessoas transgêneras que já são estabilizadas economicamente.

É de um egocentrismo sem tamanho ser uma pessoa transgênera e dizer para uma travesti que ela precisa ter mais massa cefálica do que silicone no corpo. Isso é Transfobia! Travestis são vítimas de um sistema sexista assim como qualquer mulher cis, procedimentos para alcançar um ponto de chegada estético são apenas um reflexo de uma sociedade doente.

O que acha do termo transgênero? 

Sobre o termo transgênero, eu nunca tive problema com ele, sempre o utilizei pois ele engloba todas as identidades trans*. Agora a forma como essa informação vem sendo repassada para as travestis e transexuais marginalizadas ou “siliconadas” como alguns transgêneros gostam de se referir é que está errada. Foi-se o respeito por um MSC no curriculum.

- É possível um convívio harmônico com todas as categorias? Alguma sugestão? 

Não acho que seja possível pois todas nós temos uma história de vida diferente, somos subjetivas demais apesar de estarmos inseridas em uma letra só. Eu tenho inimizades dentro do movimento e odeio esse tipo de situação.

 Recentemente uma dessas pessoas me pediu a minha jurisprudência para ajudá-la a alterar o prenome e gênero na justiça, nunca passaria pela minha cabeça negar. Imaginei o quanto ela não relutou para me fazer aquele pedido, eu teria feito o mesmo. Repassei sem pensar duas vezes. Acho que harmonia é algo difícil de se alcançar, mas socorrer alguém que passa por situações paralelas as que você passa é o mínimo, o amparo deve ser dado, é uma classe que já é muito humilhada socialmente para estarmos reforçando isso. Só não espere um convite pra tomar um chá! (risos)

- Como foi o seu processo de entendimento da condição trans e a transição? Você teve informação suficiente para lidar com as pressões e opressões?

Não lembro de uma única vez em que me reconheci como “homem”. O espectro daquilo que eu sou psiquicamente se aproximou mais daquilo que é definido como “mulher” durante a minha vida toda. A minha transição foi tranquila, eu rompi laços familiares com quem seria um empecilho - nesse caso o meu pai - e pude assumir a minha identidade para a minha família de forma tranquila e gradativa.

Eu não acordei aos 15 anos e troquei o meu guarda-roupa inteiro, esse foi um processo lento e necessário. Minha mãe sempre soube que eu não era um menino como os outros, esse fato sempre esteve estampado na minha cara… Então, quando eu diagnostiquei essa minha característica e descobri o nome do meu problema, não foi surpresa quando contei a ela que eu era uma menina. Hoje em dia quem compra sapatilha pra mim é ela, só não compra salto porque não acha um que entre no meu pé! (Haha).

- Recorda da primeira vez que se deparou com a palavra travesti? 

Eu devia ter 14 anos e estava navegando pelo falecido Orkut, quando me deparei com as comunidades que a Kimberly Luciana Dias administrava. Foi ali que eu tive o primeiro contato com esse termo e pude me identificar, antes disso eu não tinha representação alguma para me basear…

- Reflitamos: De qual maneira a criação “menino” e “menina” baseada no genital é prejudicial para as pessoas? É prejudicial mesmo quando se trata de uma pessoa cis? Você disse que a transição foi “tranquila”… Foi mesmo? 

Eu digo “tranquila” porque eu conheço casos assombrosos de agressões familiares, mas nunca foi fácil… Eu tive uma infância abortada por não poder ser quem eu queria, só fui me desfazer das minhas bonecas muito recentemente - esse ano - porque elas acumulavam muita poeira. Aos 18 anos eu fazia questão de ir ao supermercado com minha mãe e colocar todo mês uma Barbie no carrinho, era como se ela tivesse me pagando uma dívida. As marcas ficam… 

Esse ano a minha sobrinha nasceu e a minha irmã escolheu um quatro neutro. Até o carrinho dela é marrom, a primeira coisa que eu disse quando vi aquele carrinho horroroso foi “Você é louca? Isso é cor de carrinho de menina?” e ela rebateu - “E se ela não gostar de rosa? Quem tem que escolher é ela, não foi isso que você sempre disse aqui em casa?” E eu percebi que ela tinha aprendido uma lição muito grande observando o meu crescimento, ela é mais velha e sempre cuidou de mim. 

Acho que pude fechar um ciclo e aprender que a gente tem que criar filho pra que ele seja livre, há uma noção social de pais geram filhos para realizarem os sonhos que não puderam, devemos libertar as crianças e não continuar aprisionando-as aos padrões sexistas determinados pelo genital.

- Sempre faço essa pergunta nas entrevistas – é uma curiosidade minha: Qual foi a primeira pessoa trans que você recorda ter visto?

A primeira vez que eu vi uma transexual foi durante o meu ensino médio, quando fiz 15 anos. Por sinal foi ela que comprou a minha primeira cartela de anticoncepcional… Criamos um vinculo muito grande e somos grandes amigas até hoje.

Acho que a maior lição que ela me ensinou foi a do peso que a travesti e a transexual carrega por conta da sua identidade de gênero. A conheci antes da minha transição e pude observar o tratamento desumano que as pessoas davam pra ela, quando percebi que estava me olhando no espelho quando a via, pude prever todo o sofrimento que eu iria enfrentar e nem mesmo isso foi capaz de me parar.
- Você tem contato com ela?

Tenho, é a Paola Maria Menezes (foto acima). Inclusive falei com ela hoje. Ela está bem, cursando estética na Universidade Tiradentes.

- Você já afirmou que não se envolve com rapazes e que até usa uma amiga para dizer que está em um relacionamento sério como estratégia.  Por quê? Os homens ainda são tão escrotos a ponto de você desistir de viver um romance?

(risos). Tenho pavor de homem cis! Inclusive, essa amiga é a Paola. Acho deselegante o fato de estar solteira significar passe-livre para esses homens. Quando digo “estou solteira” eles encaram como uma porta aberta, e é bem longe disso. Prefiro dizer logo “Tenho namorada, sou lésbica!” Pra ver se me deixam em paz.

Os papos são sempre os mesmos,  já teve um que me chamou pra sair e disse que eu ia ter que ir abaixada no banco de trás pra ninguém me ver no carro dele… Acho que passei o dia rindo após ler isso. Não tenho a menor vocação pra ser usada por homem, e nem gosto de homem ao ponto de querer usar algum. Sabe aquela frase da Gloria Steinem “Uma mulher sem um homem é como um peixe sem uma bicicleta”? Pois bem!

- Você já namorou?

Nunca namorei e sempre corri de relacionamento porque sempre observei as relações abusivas que as minhas amigas trans* se encontravam. Tenho conhecimento de situações onde o namorado fazia questão de falar sobre a infertilidade dela só pra machuca-la, não apresentava para a família, para a sociedade, só saia escondido, era casado, tinha outra namorada, tinha vergonha e etc. São tantos casos excessivos que eu evito ao máximo qualquer contato que possa transparecer interesse. Sou bem prática, passou de “boa noite” e não é gay? Tchau.

- Sofia, imagino que muita gente tenha ficado triste por saber que você não tem vida amorosa. Esse lado faz falta? 

Não tenho vida amorosa. O nível de hormônio que eu absorvo é tão alto que não dá nem pra pensar nisso. Fico quase em uma menopausa induzida por mim mesma.

- Bom, você já sofreu um ataque transfóbico que se tornou nacionalmente conhecido. Ainda é difícil falar sobre ele e lembrar que “se tornou estatística”? 

Eu percebo que ainda não tive um tempo para passar pelo “luto”, pelo trauma, pela aceitação… Só fui deixando levar, evito ao máximo falar ou pensar sobre o dia 15 do 5 de 2014. Ainda tenho uma cicatriz no cotovelo que eu também evito passar o olhar, ainda não entrei em um ônibus após o ocorrido, não sei como será para voltar a estudar, já que eu ia de transporte público…

Esse foi mais um direito que a sociedade usurpou de mim, o direito de circular nos espaços públicos sem ser agredida fisicamente - verbalmente eu sempre fui, já estava acostumada. Eu tinha uma ideia na minha cabeça de que só seria morta se eu estivesse inserida na prostituição, mas hoje em dia eu percebo que para matarem uma travesti basta ela se materializar. O ódio a quem quebra o padrão de gênero é tão grande, as pessoas se sentem tão ofendidas com quem não segue suas regras divinas, que a violência é a primeira resposta que conseguem atribuir.

- Algo que a maioria ficou chocada foi com a insensibilidade, passividade das pessoas e até mesmo os risos de algumas mulheres cis. Isso porque existe uma ideia cultural de que as mulheres entendem melhor as diferenças, a comunidade LGBT… É balela?  

Balela demais. A noção de que a mulher é empática é uma construção social. Essa mulher “materna” não existe generalizadamente, a mulher tem o direito de ser livre dessas amarras como qualquer outro homem. Após a agressão que sofri, fui olhar alguns comentários dos sites daqui do meu próprio estado, muitas pessoas que estavam no ônibus comentaram dizendo que haviam mudado o pensamento delas, que na hora da agressão estavam do lado do agressor, mas que após terem visto o meu ponto de vista, a forma que eu encarei o problema, foi que puderam me entender. É preciso que essas pessoas saiam da zona de conforto e vejam com outros olhos as situações que as cercam, estamos acostumados a virarmos a cabeça quando vemos uma pessoa em situação de rua e fechamos o vidro do carro quando nos pedem ajuda… É preciso olhar de outro ângulo, às vezes o nosso ponto de vista está coberto de preconceitos.

- Por conta da página, você é bastante atacada por várias pessoas que se dizem feministas. Por qual motivo?
A socialização que essas meninas (Conhecidas como RadFem ou Terf) receberam foi a mesma do brasileiro padrão comum. Aquela com a noção de que Travestis não são gente, não são humanas e que não merecem sequer habitar o mesmo espaço que as “pessoas de bem”. Nada de novo até ai, o que é contraditório nessa história toda é que são pessoas supostamente esclarecidas que dizem lutar pela emancipação da mulher mas fazem isso pisando em outras, usam de uma falha no movimento feminista para exporem seus preconceitos.

O Feminismo Radical - aquele que essas pessoas idolatram - é uma teoria transfóbica e racista. Existem mulheres negras feministas que abominam o termo “fêmea” por exotificar a imagem da mulher negra, comparando-a a um animal. Mas ai quem disse que essas feministas radicais - 99% são brancas por sinal - se importam com isso? Se elas passam a mão na cabeça do racismo, imagina o que não fazem com a transfobia!

- É muito contraditório a transfobia entre feministas, não?

Sinto uma vergonha imensa quando vejo a bússola feminista apontar em direção transfóbica. Não posso lutar pela minha libertação aniquilando outra classe. Simone de Beauvoir já dizia - “Querer-se livre é querer livre ao outro.” Eu não acho que a vagina deva deixar de ser um simbolo para as mulheres cis, muita da opressão que a mulher sofre - por mais que a vagina não seja visível aos olhos sociais - vem do seu órgão genital. Inclusive eu estava na MDV-Aracaju que foi realizada esse ano e - obviamente - não sofro violência obstétrica, mas estava gritando contra a perpetuação dela no ambiente hospitalar.

Quando uma mulher cis avança, uma mulher trans* avança junto! E vice-versa! Tem que ser assim! Que todas as vaginas sejam livres, mas que isso não seja usado como parâmetro para definir a substância daquilo que é “Ser Mulher”, porque ao fazer isso, estarão excluindo pessoas trans* da mulheridade. Ser mulher é e deve ser sinônimo de liberdade e não de prisão com cadeados e amarras genitalizantes. Uma pessoa que se identifique como homem e acabe por perder o pênis devido a um tumor, irá deixar de ser homem? Uma pessoa que se identifique como mulher e realize uma histerectomia, irá deixar de ser mulher? Há muito mais em nós além do carnal e material.

- Apesar dos pesares, você se considera feminista?

Me consideram feminista, eu estou nessa luta por outras pessoas e não por mim. Dentro da classe mais desfavorecida socialmente - que é a de transgêneros - eu já me encontro bastante privilegiada. O fato de eu ter um local para dormir, ter apoio familiar, não precisar me prostituir e ainda estar inserida no ambiente acadêmico estudando psicologia… É uma chuva de privilégios que eu - aos meus 15 anos - nunca sonhei conquistar. Quando mentalizava o meu futuro só via um borrão repleto de humilhações e constrangimentos, achava que tinha dado um fim a minha vida - antes mesmo de começar a vivê-la - e hoje vejo que estou abrindo portas para que outras - aquelas 90% de travestis e transexuais que de acordo com a ANTRA estão se prostituindo - possam ter as oportunidades que eu tive.

- O que é transfobia? Já parou para pensar por que as pessoas são transfóbicas? 

Eu consigo captar uma piada transfóbica com facilidade porque ela me atinge. Se uma pessoa acha engraçado rir do jogador Ronaldo pelo simples fato de ele ter saído com travestis, quem deve refletir sobre isso é essa própria pessoa. Ela deve se perguntar “Porque eu acho isso engraçado?Porque é motivo de risada se relacionar com travestis? É errado?” Ela achará a resposta sozinha: “Eu sou uma pessoa transfóbica”. Fim. “Por que eu sou uma pessoa transfóbica”.

- Você é estudante de psicologia. De certa forma, é uma maneira que encontrou para se entender ou de entender as pessoas da sociedade em que vive? 

Eu entrei no curso por achar - equivocadamente - que era um ambiente mais acolhedor pra mim. Na época da matricula eu não havia alterado o meu prenome ainda e estava bastante receosa sobre o nome social. Acabou sendo traumatizante de qualquer forma, aprendi da pior maneira - com as expectativas bem altas - que psicólogos não são isentos de preconceitos. Não me arrependo da escolha, me encontrei na área da psicologia social e espero seguir essa direção. Muitas pessoas entram no curso esperando se entender mas na realidade precisam é de terapia, coisa que eu já fazia pela obrigatoriedade que o governo impõe.

- Conta um pouco sobre a sua experiência na universidade…

Já tive brigas de sair chorando da sala - e inclusive já fui chamada de heterofóbica - por defender a sigla LGBT em sala de aula. Uma graduanda evangélica queria fazer um projeto de pesquisa em um grupo que eu participava, onde o tema sugerido por ela era encarar a homossexualidade - ou homossexualismo, segundo a mesma - como um terceiro gênero. Não tenho a menor paciência pra quem tá começando agora (risos).

- Como futura psicóloga, você é a favor da obrigatoriedade do laudo ou da terapia para trans fazerem algumas cirurgias? 

Não, encaro ela como uma violência sem tamanho. Uma terapia compulsória não flui, não tem um ponto de chegada… Ela fica estagnada no tempo. Você não se abre, você não quer sequer estar ali. Dois anos de terapia só prolonga o sofrimento. Essa obrigatoriedade é mais um reflexo do poder da classe dominante - homem/cis/branco. Vemos o mesmo acontecer com as mulheres que querem realizar a laqueadura e são impedidas por médicos que não levam as suas queixas com seriedade.

- Sofia, diante de tudo isso que estamos falando, como é o seu temperamento no cotidiano? 

Me considero bastante temperamental. Erving Goffman costuma falar que a pessoa estigmatizada está alternando entre dois extremos, ou ela se encontra completamente inerte, ou completamente agressiva… Não é diferente comigo e das outras travestis e transexuais. Somos apedrejadas todos os dias, somos alvo de chacota, somos consideradas a excreção que a sociedade para pra rir… Não é de se espantar que uma pessoa que consiga ficar apática a isso também exploda quando a paciência acaba.

- Você acha que a mídia desenvolve um papel positivo na visibilidade da população trans ou ainda é falha? 

A mídia pra mim é o maior culpado pela péssima representação social que a travesti possui, a transexual ainda é favorecida nesse aspecto. As travestis não estão inseridas nas escolas, nas famílias, nos empregos formais, nas faculdades… Então qual será a representação que a sociedade criará da travesti? Aquelas que virem na mídia, que é sempre quando ela é morta, assassinada, estuprada ou quando mata, assalta e se prostitui.

 A sociedade empurra a travesti para à margem e ainda a culpabiliza por isso. A família e o estado são as duas principais instituições que devem promover o bem estar da criança e do adolescente, mas quantos são os casos de abandono quando a família percebe que o filho é gay? Imagina ainda quando esse filho é Travesti? Quando a família abandona e o estado carece de políticas publicas… Só sobra a prostituição. Penso que a prostituição ainda seja uma saída porque sem ela essas pessoas estariam fadadas diretamente a morte, já que indiretamente já estão.

- Lea T, Nany People, Roberta Close, Rogéria ou Ariadna, alguma delas te representa? 

Me identifico mais com a Daniela Andrade. Nenhuma dessas poderia falar por mim, apesar de sofrerem opressões similares as que eu sofro. Não acho que alguma das cinco alguma vez teve o interesse de ser porta-voz de alguma classe. Dentre as que você citou, fico com a Nany People. Acho que a carga de conhecimento que ela possui e acumulou ao longo da vida acabou tornando-a uma pessoa extremamente interessante.

Eu me encontrei na Daniela e até hoje não tive divergência alguma sobre aquilo que ela verbaliza. Assino embaixo quando ela diz que “Travesti não é considerada gente!” porque eu sei que a realidade brasileira é transfóbica. Eu vivo essa mesma realidade, acho que chegou a hora de tirar essa camada de superficialidade que cobre as identidades trans* e encarar o sofrimento de perto. Não vivemos em função de uma cirurgia plástica. Aliás, nem viver podemos, sobrevivemos.

- Existe lado positivo em ser trans?
Eu teria pavor de ser cisgênera! Eu me encontrei na transgeneridade de uma forma incrível, acho que pertencer a um grupo marginalizado te trás uma nova visão e perspectiva do sistema social.Eu nunca seria a favor dos direitos humanos da forma que eu sou se eu não tivesse sofrido na pele o que é ser considerada uma subcategoria humana. A percepção da classe dominante é muito deturpada e rasa… O sofrimento me trouxe um novo ponto de vista capaz de ajudar não só a mim mesma, mas a outras pessoas.

- O que você espera da vida? 


Penso que a Transgeneridade seja a “bola da vez” e que agora seja a hora de aproveitar esse momento para conscientizar o senso comum sobre os anseios, sonhos e aflições das pessoas trans*. Foi-se o tempo onde desperdiçaríamos essa oportunidade para falarmos sobre técnicas cirúrgicas das variadas transgenitalizações… 

É preciso focar na angustia que é simplesmente SER. Quando “Ser” se tornou um crime? Quando ir ao ponto de ônibus se tornou um martírio? Quando um simples passeio se tornou uma tortura? Quando os olhares de nojo e cochichos irão parar? Simples passos para uma pessoa cis, são passos de sofrimento para pessoas trans*. A convenção 169 da OIT - Organização Internacional do Trabalho garante no artigo 1 - A auto-identificação como indígena de qualquer pessoa que assim se intitule. Então porque eu - mulher que nasceu com um pênis - não posso me identificar da forma que verdadeiramente me representa?

- Sofia, qual é o seu sonho? 

Ser doutora…  Calma! (risos). Meu maior sonho é ver a lei João W. Nery ser aprovada.

- Para finalizar, o que dizer para as travestis e transexuais da nova geração? 

Eu me imagino com 15 anos lendo essa mesma entrevista e estando completamente fixada na tela do computador… Queria dizer para as pessoas que estão confinadas em uma carcaça externa por causa da pressão familiar ou social, que isso tudo passa. É possível sair desse cárcere corporal, externalizar a própria identidade e fazer isso com calma e leveza. É possível completar o ensino médio - eu não disse que é fácil! É possível também cursar uma faculdade - com bastante esforço e autocontrole! -

 É possível alterar o nome e o gênero nos documentos sem ter feito a cirurgia de redesignação genital - basta ter foco! E é possível se amar mesmo sendo incomum, não acredite nos livros de biologia! Existem mulheres com pênis sim! Anormal é ser igual… Não deixe que ninguém construa um limite para você, quebre todas as fronteiras e se insira na sociedade, eles terão que te engolir… Seja travesti, transexual ou transgênero! Eu sou travesti e sou diferente de tudo aquilo que impuseram que uma travesti deveria ser.

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