quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

529 mil redações zeradas - sem espanto.

Essa semana saíram os números do ENEM, e diversos meios midiáticos voltaram suas atenções para um fato preocupante: 529 mil redações foram zeradas.

Não me espantou.
Muitos desses meios falaram sobre a "falta de leitura" dos alunos. Um instante de pausa para revirar os olhos e dizer em voz alta "Senso comum mandou um beijo".

A culpabilização do aluno, ou seja, atribuir a ele a culpa pelos números, não dói no calo do poder público, das administrações escolares e da precária estrutura de ensino.
Não é que eu discorde do fato de a leitura melhorar bastante a escrita, mas é hipocrisia demais essa culpabilização.

Por quê?
Vou falar o que eu penso sobre ensino.

A partir dos princípios básicos da análise do comportamento (e eu peço desculpas por falar disso de uma maneira tão simplista) os comportamentos são selecionados por suas consequências. Ou seja, são mantidos aqueles comportamentos cujas consequências são reforçadoras e não são mantidos aqueles cujas consequências são aversivas/extintivas.

No sistema de ensino regular (obviamente não falo por todas as escolas, mas pelo que conheço de algumas delas) as aulas de redação, quando existentes, são:
1. Focadas em discussões de alguns temas recorrentes na mídia*;
2. Baseadas em uma ou outra redação escrita pelos alunos, com baixíssima frequência;
3. O PIOR DE TUDO: NA PRÁTICA, EXISTE A FALTA DE FEEDBACK. Ou seja, nenhuma consequência é oferecida para os comportamentos de escrever bem, ou mal.

Isso significa que se o aluno escreveu uma ótima redação**, mas nunca teve seu texto corrigido, ou teve acesso a uma média numérica, sem indicações do que poderia melhorar, do que foi bom e o que não foi, QUANDO MUITO, sua redação continuará no mesmo nível.
E o aluno que escreveu uma redação ruim***, nestas mesmas condições, continuará escrevendo uma redação ruim - e se as médias numéricas forem generosas, este comportamento será fortemente mantido.

Assim, os comportamentos de escrever bem** podem ser extintos, por não terem sido reforçados, e os de escrever mal*** podem ser mantidos, por não terem sido substituídos por outros mais adequados.

A culpa é do professor?
Há o que ele possa fazer para reverter esse quadro, que no caso seria o retorno detalhado para o aluno sobre o que está bom e o que não está, para começar.
Mas, obviamente, esta maneira de ensinar também é o reflexo de um sistema educacional falido. Pouco reconhecimento financeiro e de carreira do professor que acarretam maior carga de trabalho e dificuldades até psicológicas; focos das escolas (e aqui estou falando especialmente das particulares) nos vestibulares e não na formação do aluno enquanto cidadão...

Adorei os temas das redações das grandes instituições deste ano: publicidade infantil e camarotização social. Esfregaram na nossa cara que é necessário  filosofia, sociologia, discussão crítica para além da história-geografia-ciências e suas gavetinhas.

Não acredito em grandes alterações no sistema educacional devido a estes números horrorosos. Mas eles fazem seu papel escancarando o lixo no qual estamos transformando nossa educação.



* E aí o professor que acidentalmente acertar o tema da redação vai virar um guru depois do vestibular.

** Ótima redação, no caso, seria uma redação adequada às regras das grandes provas de vestibular, valorizadas pelas escolas hoje.

*** Idem observação acima.

2 comentários:

  1. Gostei da reflexão. Acho sempre bom pensarmos em termos de contingências, e mais ainda levando em conta o papel dos ambientes sociais complexos, as culturas que estamos inseridos.

    Acho que a discussão da valorização do professor é essencial, e não dá pra avançar sem ela, mas existe um aspecto da educação que não depende necessariamente dela, embora ande junto. Saber ensinar é um problema histórico de desenvolver habilidades para manejo de contingências educacionais, responsáveis por colocar o comportamento do aprendiz sob controle daquilo que é importante que ele saiba.
    Se dermos um salário de 20mil reais por mês a professoras e professores do país, continuaremos com o problema do saber ensinar, embora certamente criaremos condições para que se dedique a isso integralmente e esteja mais bem preparado. Mas esse é um problema que vem também da formação, as filosofias da educação são um negócio difícil, porque a ênfase dificilmente está aonde tem que estar, a meu ver e acredito que a seu ver, no manejo da contingência. Em geral é culpa do aluno, ou até se diz que é culpa do contexto, mas ninguém sabe o que fazer pra melhorar a prática.

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    1. Diego,
      Concordo com você!
      A formação dos professores, de fato, é deficitária (e em tantos sentidos que é até difícil enumerar).
      Lendo o que você escreveu pensei também nos documentos educacionais oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais, Diretrizes...
      Os documentos, que eu imagino deveriam auxiliar os docentes a determinar o que ensinar, o que é importante, o que é necessário, são inespecíficos e até mesmo bem complicados de aplicar na prática.
      Falando, por exemplo, das indicações para a "Orientação Sexual" (que é como eles chamam a Educação Sexual), são ideias limitadas, higienistas, inespecíficas, que levam o professor do nada ao lugar algum.
      Então, concluindo, os docentes ficam desamparados e fazem o que podem.

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