quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Deuses Americanos, Psicologia e Outras coisas

Deuses Americanos

Recentemente conheci os escritos de um autor chamado Neil Gaiman. Para começar li seus dois livros de contos "Coisas Frágeis" I e II. Foi amor. Fiquei apaixonada pelo estilo dele de escrever, misturando realidade e ficção de uma maneira tão natural.

Então, por indicação de amigas, eu fui ler o Deuses Americanos (que estava em promoção na Black Fraude Friday, por parível que increça).

Não quero dar grandes spoilers sobre o livro, mas contextualizando: é a história de uma guerra iminente entre deuses americanos e deuses modernos. O grande lance é que os Estados Unidos (local onde se passa o livro) foi populado por pessoas de outros lugares do mundo, que trouxeram consigo seus deuses (africanos, europeus...) e eles, a muito custo, tentam sobreviver na terra do Tio Sam.
Os deuses modernos (televisão, internet, tecnologias) estão tomando o tempo das pessoas, e existe uma guerra se aproximando para "disputa de território". É surpreendente, e eu indico com força a leitura.

Separei pequenos trechos que achei significativos, e os reproduzo abaixo para que sintam o gostinho.

"Alguém me disse uma vez que esses momentos em que todo mundo cala a boca ao mesmo tempo acontece quando passaram vinte minutos de uma hora completa ou quando faltam vinte minutos para completar uma hora".

"- Você está feliz? - perguntou o senhor Nancy, de repente.
- Não muito - respondeu Shadow - mas não estou morto.
- Hein?
- 'Não diga que um homem é feliz até que esteja morto'. Heródoto.
- Eu ainda não estou morto e, principalmente porque ainda não estou morto, estou feliz igual a um marisquinho".

"E achou que preferiria, em qualquer situação, uma atração de beira de estrada a um shopping, por mais desprezível, deformada ou triste que fosse". 

" - Eu sou a caixa dos idiotas. Sou a TV. Eu sou o olho que vê tudo e eu sou o mundo do raio catódico. Eu sou o tubo dos tolos...o pequeno altar na frente do qual a família se reúne para fazer suas preces.
- Você é a televisão? Ou é alguém na televisão?
- A TV é o altar. Eu sou aquilo pelo que as pessoas se sacrificam.
- Como elas se sacrificam?
- Dão o tempo que têm - disse Lucy - às vezes, umas às outras." 





Psicologia e Outras coisas

Um desses trechos, em especial, fez alguma coisa se movimentar em mim. Me fez pensar em um turbilhão de coisas, especialmente no "ser psicóloga".

É comum deitarmos na cama, à noite, e pensarmos em tudo aquilo que ouvimos. Imaginarmos como estariam nossos pacientes* naquele  momento. Se estariam apanhando, sorrindo, chorando, desejando. Como estariam se sentindo.

Ser profissional de cuidados com os outros é como ter uma fogueira acesa a qual você precisa tomar conta, mas não deve se queimar.

E esse conselho nos é dado, em nome do que chamam de "profissionalismo". Ninguém sabe bem o que é isso, mas falam sobre mesmo assim.

Muitos de nós, recém-psicólogos (e eu desconfio que profissionais mais experientes também, embora escondam melhor) temos dificuldades em estabelecer uma barreira entre as histórias que ouvimos e as nossas próprias histórias.

Então, questiono: eu realmente posso exercer uma boa prática profissional se não me envolver na história da pessoa? E por outro lado, eu realmente posso exercer uma boa prática profissional se estiver envolvida nesta história?

Acho que não existe resposta, e talvez até mesmo a forma de questionar isso não deva ser tão simplista, tão "sim ou não".

Eis aqui o trecho culpado por essa chuva de ideias:

"Nenhum homem, proclamou Donne, é uma ilha, e ele estava errado. Se nós não fôssemos ilhas, estaríamos perdidos, afogados nas tragédias dos outros. 
Nós nos isolamos (uma palavra que significa, literalmente, ser transformado em ilha) da tragédia dos outros por nossa natureza de ilha, e pelo desenho e pela forma repetitiva das histórias. [...]

Sem indivíduos, enxergamos apenas números: mil mortos, cem mil mortos, "o número de vítimas pode chegar a um milhão". 

Com histórias individuais, as estatísticas se transformam em pessoas - mas até isso é mentira, porque as pessoas continuam a sofrer em números que, por si só, são entorpecentes e sem sentido. [...]

Nós desenhamos nossos limites ao redor desses momentos de dor...continuamos em nossas ilhas, e eles não podem nos ferir. Ficam escondidos sob uma cobertura nacarada, suave e segura para que escorreguem, como as ervilhas, de nossas almas sem que sintamos dor verdadeira".


*Paciente é um nome que a Psicologia importou da medicina, mas não é o mais adequado, especialmente por carregar em si a ideia de passividade. Cliente também não me parece muito melhor, me dá a impressão de que a pessoa está comprando saúde mental (não que não seja verdade, mas...). Ainda não cheguei a uma conclusão sobre como nomear as pessoas que cumprem este papel de serem __________?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

(Tentativa de) ensinar crianças analisarem seus próprios comportamentos: "Olho Mágico".

A habilidade de analisar o próprio comportamento é importante para que seja possível prevê-lo, controlá-lo, modificá-lo, falar sobre ele com outras pessoas. 
Quando percebo, por exemplo, que todas as vezes que estou em situações desafiadoras eu começo a roer as unhas, crio condições para pensar em outros comportamentos que possa emitir nestas mesmas situações - e que não envolvam tantos prejuízos. 

É importante que mesmo as crianças pequenas aprendam a analisar seus comportamentos. 
Vamos supor a seguinte situação: uma criança bate num coleguinha na escola, e é afastada do mesmo: além de isolada na sala da diretora, toma uma bronca. Ela aprendeu, portanto, que ao bater no colega a consequência será uma bronca. Seria importante, entretanto, que aprendesse que o colega ficou chateado, chorou, não vai mais querer dividir seus brinquedos com ela em situações futuras.
Ou seja: além das consequências artificiais, deve perceber as consequências naturais de seus comportamentos: isso deverá colaborar para sua autonomia e independência. 
Será mais apta a prever consequências para seus comportamentos, e selecioná-los nas mais diversas situações. Isso pode ser importante em momentos nos quais a pessoa deverá fazer escolhas e decisões sem supervisão ou influência de outras: nós não acompanhamos os filhos nas festas, eles devem saber prever as consequências mais prováveis para os comportamentos que emitirem.

Isso parece óbvio, eu sei. Mas não é. Os pais tendem a impor regras, limites e consequências artificiais para proteger os filhos de situações desagradáveis, e isso pode gerar crianças que não conseguem identificar as consequências naturais de seus comportamentos.

Professores, cuidadores, avós e outros adultos também fazem isso. Usei os pais como exemplo. 

Dá pra ensinar isso, ajudá-los nessa tarefa? 

Dá pra tentar, sim! E esse post é sobre uma tentativa que eu fiz em um atendimento e pensei em compartilhar pro caso de haver outros terapeutas perdidos e iniciantes como eu.
A proposta que vou descrever a seguir é uma análise específica, chamada "Análise Funcional"*, e vou falar um pouco sobre o "Olho Mágico", técnica que pode ser usada para (tentar) ensinar esta habilidade analítica para crianças.


"Olho Mágico"
É um recurso lúdico para iniciar o ensino de análise de contingências para crianças. É muito simples e podem ser feitas adaptações de acordo com as necessidades. 

Em geral, antes de analisar o próprio comportamento da criança, é mais divertido começar analisando comportamentos de outras pessoas: personagens de filmes, de livros, histórias em quadrinhos, iniciando com algumas fáceis e passando para outras um pouquinho mais difíceis. Então é possível incluir comportamentos emitidos pela própria criança.

O "Olho Mágico" em si é esta tabela utilizada na forma impressa:




Vou descrever algumas possibilidades abaixo, como exemplos.
O curta metragem será o "Peck Pocketed", um curta metragem (https://www.youtube.com/watch?v=qmCWjjZketo) no qual um passarinho está em seu ninho, observando um outdoor que mostrava uma sala de estar confortável. 
SPOILER! Ele vê uma senhora dormindo em um banco abaixo da árvore usando óculos, broche, relógio e celular, e começa a roubar seus objetos, ajeitando-os em seu ninho, de 
forma a fazer uma confortável sala. Então, quando decide roubar sua calcinha, ela acorda. Confortavelmente acomodado em sua "sala", cai quando o ninho se desmancha e os objetos voltam para a dona. Ele fica pendurado na árvore pela calcinha, e ela o arremessa para longe. O passarinho cai no outdoor e se deita no sofá desenhado, ficando na tão sonhada sala.

1. Possibilidade de análise de trecho de filme:
Após assistir o filme com a criança (mais de uma vez), apresentar as fichas impressas de imagens com comportamentos do pássaro e pedir que coloque na sequência de acontecimentos, para começar.


                          




                          


                         


                          


                          


                         


                          


                         


Então, após ter explicado para a criança como funciona o "Olho Mágico", separa-se alguns comportamentos específicos a serem analisados, entrega-se as fichas do antecedente, comportamento e consequente para que a criança coloque nos lugares corretos da tabela, auxiliando-a no que for necessário.
(Esta é uma análise funcional muito mais simples que a análise que fazemos, mas para 
começar é necessário ir com cautela. Por isso só foram inseridos um antecedente, um comportamento e um consequente por vez.)

É essencial que o adulto aplicador da atividade descreva oralmente (ou por meio de libras, quando for o caso) o que a figura significa.

Exemplo:
1. Comportamento do pássaro de roubar o celular da senhora.


















Após fazer repetidamente este exercício com diversos comportamentos, é importante ir retirando aos poucos a ajuda, até que a criança faça de forma independente.
No caso de crianças já alfabetizadas, é possível passar do controle das imagens para os comportamentos descritos de forma escrita.
Lembrando: é importante reforçar seus comportamentos de fazer a atividade corretamente, e é possível fazer isso por meio do uso de elogios sociais, acesso a brinquedos ou brincadeiras, fichas, etc. 

Ao perceber que a criança conseguiu fazer corretamente essa separação das ações em contingências, é legal passar para análise de seu próprio comportamento. Para que não seja uma coisa chata para ela, uma opção é utilizar uma filmadora durante alguma brincadeira. Então separar imagens da filmagem, assim como foi feito com o curta metragem acima, para que seja mais lúdico e claro. 
E, assim como a análise anterior, caso a criança seja alfabetizada, é ótimo ensinar o comportamento de colocar na contingência a descrição escrita dos comportamentos - assim, ficará mais fácil de analisar comportamentos que ocorrem em situações diversas.

Existem muitas outras possibilidades de aplicação. 
Utilizei uma vez a seguinte sequência de atividades com uma criança que era alfabetizada: mostrei um pequeno trecho do filme Tinker Bell (que é um ótimo filme para trabalhar habilidades sociais, indicado pela professora Alessandra Bolsoni-Silva e sua orientanda Alessandra Falcão) e depois da exibição expliquei como funcionaria o Olho Mágico. Disse que serviria para vermos os comportamentos dos personagens com olhos mais inteligentes. Eu havia colocado pequenos papéis com antecedentes, comportamentos e consequências escritos dentro de bexigas (ela adorava bexigas coloridas e se divertia muito estourando-as). Cada bexiga, inicialmente, continha um papel com um conjunto (A->R-C). Jogávamos, estourávamos a bexiga, líamos os papéis e juntas alocávamos na tabela as descrições. Quando os comportamentos tinham consequências negativas, pedia que ela dissesse uma possível consequência positiva, e reforçava respostas corretas. Caso as consequências fossem positivas, eu propunha outros comportamentos prováveis para a situação e a criança tinha que adivinhar qual poderia ser a consequência, sendo novamente reforçada com respostas corretas. 
Quando finalizamos todas as bexigas, misturamos os papéis e "competimos" para ver quem conseguiria encontrar primeiro os conjuntos corretos de contingências. 
A criança,  no caso, demonstrou gostar muito da atividade e atingiu as expectativas de analisar contingências corretamente.

Existem outras 826373926363 possibilidades. Se vocês usarem, me contem pra eu guardar no meu estoque de ideias que eu posso precisar um dia...


Essa é uma descrição incompleta (porque seria necessário, provavelmente, ensinar comportamentos pré-requisitos para as crianças, etc), mas dúvidas/sugestões/conversas sobre isso podem ser discutidas aqui!

Como diz o título, esta é uma tentativa de ensinar as crianças a analisarem seus próprios comportamentos. Não existem dados científicos que comprovem sua eficácia, mas é possível que seu uso dê resultados interessantes em alguns casos.



domingo, 18 de janeiro de 2015

Conquistando voz - "Entreviste uma mulher", do ThinkOlga.

"Seja de direita ou de esquerda, você hoje encontra milhares de colunistas, fontes e colaboradores em jornais, revistas, TV e internet para ajudar você a entender o mundo e formar a própria opinião. Existem vários grupos de minorias, no entanto, que têm relativamente poucos representantes. Um deles são as mulheres. Em 2013, a Universidade de Nevada pesquisou 352 matérias de primeira página do jornal The New York Times e viu que, dentre os entrevistados, 65% eram homens e apenas 19% eram mulheres (17% se referiam a fontes institucionais). No Brasil, a Superinteressante abordou o tema em 2010 e revelou que apenas 25% das fontes eram mulheres."

Estas são palavras escritas no Think Olga, cuja proposta é criar um cadastro de mulheres que possam falar sobre determinados assuntos para jornalistas, etc.

Abaixo, vai o link para o assunto todo. Amigas, vamos conquistar voz! Cadastrem-se.

http://thinkolga.com/projeto-entreviste-uma-mulher/


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

529 mil redações zeradas - sem espanto.

Essa semana saíram os números do ENEM, e diversos meios midiáticos voltaram suas atenções para um fato preocupante: 529 mil redações foram zeradas.

Não me espantou.
Muitos desses meios falaram sobre a "falta de leitura" dos alunos. Um instante de pausa para revirar os olhos e dizer em voz alta "Senso comum mandou um beijo".

A culpabilização do aluno, ou seja, atribuir a ele a culpa pelos números, não dói no calo do poder público, das administrações escolares e da precária estrutura de ensino.
Não é que eu discorde do fato de a leitura melhorar bastante a escrita, mas é hipocrisia demais essa culpabilização.

Por quê?
Vou falar o que eu penso sobre ensino.

A partir dos princípios básicos da análise do comportamento (e eu peço desculpas por falar disso de uma maneira tão simplista) os comportamentos são selecionados por suas consequências. Ou seja, são mantidos aqueles comportamentos cujas consequências são reforçadoras e não são mantidos aqueles cujas consequências são aversivas/extintivas.

No sistema de ensino regular (obviamente não falo por todas as escolas, mas pelo que conheço de algumas delas) as aulas de redação, quando existentes, são:
1. Focadas em discussões de alguns temas recorrentes na mídia*;
2. Baseadas em uma ou outra redação escrita pelos alunos, com baixíssima frequência;
3. O PIOR DE TUDO: NA PRÁTICA, EXISTE A FALTA DE FEEDBACK. Ou seja, nenhuma consequência é oferecida para os comportamentos de escrever bem, ou mal.

Isso significa que se o aluno escreveu uma ótima redação**, mas nunca teve seu texto corrigido, ou teve acesso a uma média numérica, sem indicações do que poderia melhorar, do que foi bom e o que não foi, QUANDO MUITO, sua redação continuará no mesmo nível.
E o aluno que escreveu uma redação ruim***, nestas mesmas condições, continuará escrevendo uma redação ruim - e se as médias numéricas forem generosas, este comportamento será fortemente mantido.

Assim, os comportamentos de escrever bem** podem ser extintos, por não terem sido reforçados, e os de escrever mal*** podem ser mantidos, por não terem sido substituídos por outros mais adequados.

A culpa é do professor?
Há o que ele possa fazer para reverter esse quadro, que no caso seria o retorno detalhado para o aluno sobre o que está bom e o que não está, para começar.
Mas, obviamente, esta maneira de ensinar também é o reflexo de um sistema educacional falido. Pouco reconhecimento financeiro e de carreira do professor que acarretam maior carga de trabalho e dificuldades até psicológicas; focos das escolas (e aqui estou falando especialmente das particulares) nos vestibulares e não na formação do aluno enquanto cidadão...

Adorei os temas das redações das grandes instituições deste ano: publicidade infantil e camarotização social. Esfregaram na nossa cara que é necessário  filosofia, sociologia, discussão crítica para além da história-geografia-ciências e suas gavetinhas.

Não acredito em grandes alterações no sistema educacional devido a estes números horrorosos. Mas eles fazem seu papel escancarando o lixo no qual estamos transformando nossa educação.



* E aí o professor que acidentalmente acertar o tema da redação vai virar um guru depois do vestibular.

** Ótima redação, no caso, seria uma redação adequada às regras das grandes provas de vestibular, valorizadas pelas escolas hoje.

*** Idem observação acima.

Entrevista com Sofia Favero

Este texto (um pouquinho longo) é uma entrevista detalhada que eu adorei ler - por isso reproduzo abaixo - com Sofia Favero, criadora criadora da página no facebook Travesti Reflexiva (https://www.facebook.com/TReflexiva?ref=stream&fref=nf)


"A sergipana Sofia Favero Ricardo é o rosto da nova geração de pessoas trans engajadas na luta contra a transfobia e o machismo. Aos 21 anos, a estudante de psicologia encabeça a fan page “Travesti Reflexiva”, que soma mais de 72 mil curtidas, e ajuda muita gente. 

"No mundo de Sofia", a rede social é ferramenta para filosofar sobre cotidiano, preconceitos e superações. E, assim como o livro que empresta o seu nome, também recebe mensagens vindas de todos os cantos. Algumas que ressaltam a importância de seu papel e outras anônimas encharcadas de ódio.

Sofia defende a palavra “travesti”, é humorada, temperamental, tem senso crítico e carrega na linda existência o melhor do feminismo - mesmo que para isso tenha que bater de frente com feministas cis radicais e ser expulsas de grupo. Claro, ela costuma tocar em feridas abertas.
Neste ano, tornou-se manchete devido ao assédio e agressão que sofreu dentro de um ônibus. Também se tornou estatística. O texto que escreveu sobre o episódio ultrapassou as barreiras do grupo e iluminou a transfobia de cada dia.

Ao ser convidada para um bate-papo com NLucon, brincou: “Agora, sim, sei que estou conhecida de verdade”. E nos proporcionou uma entrevista sincera e repleta de conteúdo.Confira

- Travesti Reflexiva é um sucesso e tem mais de 72 mil curtidas. Como surgiu a ideia de abrir um espaço para a reflexão sobre o grupo? Qual é a proposta? 

Surgiu quando eu vi que havia uma carência de conscientização do que é ser travesti e transexual na realidade brasileira. Quando eu falo “realidade” quero explicar para o senso comum que as pessoas transgêneras são tão comuns quanto qualquer outro ser da população. As pessoas que me conhecem levam um choque a princípio, mas depois param e pensam: “Sofia é tão previsível, ela é como eu”.

A sociedade criou essa ideia de que pessoas transgêneras são quimeras, bichos de 7 cabeça,personagens de algum filme terror… E não é nada disso. O meu intuito sempre foi esse, mostrar aquilo que me fazia rir, chorar, pensar… Como qualquer outra pessoa, o que me diferencia da sociedade é a falta de oportunidades e o preconceito. O estigma que uma travesti carrega é muito pesado para ser de conhecimento somente dessa classe, é preciso que a sociedade veja com os olhos dessas pessoas o que é sofrer transfobia.

- A internet e, sobretudo, as redes sociais mudaram um pouco a maneira de se fazer militância, de ser ativista e até de se entender. Qual é o lado positivo dessa ferramenta na luta contra a transfobia?

Eu tenho a liberdade para expor aquilo que penso, não preciso de alguém mediando ou podando a minha fala… Creio que seja uma ferramenta extremamente eficiente, dado que o alcance do Facebook é enorme.

E o negativo?

Existe sim o lado negativo, existem pessoas dentro do próprio movimento transgênero que são totalmente hierárquicas e que banalizam o sofrimento da travesti, que é compulsoriamente obrigada a se prostituir. Existe uma vertente do movimento feminista que encara a travesti e a transexual como antagonista e de quebra ainda tem o movimento gay - também conhecido como LGBT - que finge lutar por políticas públicas, mas só “cede” atenção para as pessoas trans* por meio de petições. Então a minha luta é praticamente contra todos (risos), chega a ser deprimente não conseguir sair do próprio prisma para alcançar a sociedade.

- Você acredita no ativismo virtual como forma de revolução?

Não acreditava até receber incontáveis mensagens de todos os tipos de pessoas me contando como mudei a visão delas sobre o que era ser travesti. Mas eu nunca fiquei apenas no virtual. Participei esse ano da construção da MDV - Marcha das Vadias daqui de Aracaju, que agora é interseccional, estou com quatro visitas marcadas para palestrar em universidades em três regiões do Brasil.

Também faço parte de uma ONG - AMOSERTRANS (Associação e Movimento Sergipano de Travestis e Transexuais) que acredita que o bem estar da população Transgênera não é apenas distribuir camisinha e gel como algumas instituições acreditam. E estou aberta a novas possibilidades, só tenho 21 anos! Tenho mais 40, 50, 60 anos pela frente - isso se a transfobia não por um ponto final na minha vida antes disso.

- Fazendo um paralelo com nome da fan page, quais são as reflexões que o grupo trans passa atualmente? A revista Time declarou que o grupo será o próximo assunto a ser discutido socialmente, assim como o racismo e homossexualidade foram/são. Concorda? 

Concordo, e acho que  agora é a hora que os oportunistas irão aparecer. Milhares de pessoas cisgêneras tratando pessoas transgêneras como ratinhos presos na caixa de skinner. Não vejo um tratamento humanizado quando essa classe - a maioria acadêmica - procura saciar a sua fome de entendimento - raso - sobre a transgeneridade. É preciso que as pessoas transgêneras tenham voz!
Se eu não falar por mim, enquanto mulher transexual ou travesti, aquilo que me aflinge, quem poderá? Um pesquisador? Um estudante que quer fazer um TCC sobre uma cirurgia? Uma cirurgia é uma gota de preocupação no oceano de transfobia que eu estou submersa. Penso que agora seja a hora da sociedade abaixar a caneta e parar de estudar as pessoas transgêneras como doentes, é preciso escuta-las.

- O que as pessoas cis ainda precisam saber sobre as pessoas trans?
Bom, falo por mim e sobre mim, o que as pessoas precisam saber sobre mim. Não posso falar por todas as pessoas trans. A sociedade precisa saber que eu não almejo uma cirurgia acima do bem e do mal, é preciso tirar o foco da superficialidade - já que pro meio social a transgenitalização é uma futilidade, um artigo de luxo! - e entender primeiro porque “Ser Travesti” é um crime tão grande”.

 Vivemos em um pais em que ser chamada de Travesti é pejorativo. Mulheres cis falam umas para as outras “Aquela ali tá tão feia que tá parecendo um traveco!” E não entendem - ou fingem não entender - o tamanho da transfobia que há nessa frase. Existe beleza na Travesti! Existe beleza na dor, na rejeição, na exclusão…

Tudo isso me tornou em quem eu sou, me fez lutar contra a opressão. É como se eu tivesse sido marcada com ferro quente e fosse culpada de alguma atrocidade muito grande. Uma simples ida ao supermercado já é um dano emocional para uma pessoa trans! É incrível como nenhum espaço é saudável para essa classe.

Explica melhor, por favor. 

As chacotas são constantes em qualquer ambiente. Lembro da época em que eu não havia mudado o meu nome judicialmente e os professores cisgêneros se recusavam a usar o nome social, eu saia da faculdade pensando em pular na frente de algum carro para acabar com aquele sofrimento. Uma pesquisa do ArtivismProject.com afirma que 3 em cada 5 pessoas trans irão tentar se suicidar ao longo da sua vida, e não é pra menos! São agressões familiares, sociais e subjetivas! Todas as instituições - inclusive o estado - te ensinam a se odiar a partir do momento que coloca em um livro de biologia que você não existe! “Só existe homem com pênis e mulher com vagina, você é um erro da matrix.”

- Antes de continuarmos, você se define como travesti e diz não ter medo da palavra. Por que escolheu esse termo para falar sobre si? Acha que muita gente se diz “transexual”, “transex” - hehe - ou “trans” como maneira higienizadora?  

Eu penso que a maioria se identifique como transexual como uma tentativa para sanear a própria imagem. O estigma que a Travesti carrega é tão grande, essa palavra é tão pesada, que até a minha família me corrige quando eu digo que sou travesti. Recentemente minha irmã rebateu “Você não é Travesti! Você é transexual!”, porque isso foi o que a sociedade e a medicina plantaram na cabeça do senso comum.

Que há uma classe superior - a de transexuais. Eu encaro que a travesti passa por uma graduação - financeira - quando passa a se enxergar como transexual e não mais como travesti. A identidade “travesti” está muito mais ligada ao gueto e a periferia que a identidade “transexual”.

- Você diz que quem é bem sucedida não quer mais ser travesti, é isso?

Ninguém quer ser referenciada como travesti - por mais que seja! Não importa o seu grau financeiro, estético e cultural. Passei então, a perceber a carga transfóbica que isso trazia dentro do próprio movimento que faço parte, e a me identificar como travesti. Em lugares que vou me apresentam como transexual de uma forma extremamente politicamente correta, um termo não me assusta e não assustaria as outras se o estigma e a transfobia não fossem tão gritantes. Uma palavra não me agride, pessoas sim.

- Digitei “Travesti é” no Google e os resultados que completam a frase envolvem crimes e assassinatos. Como é pertencer a um grupo que tem a própria existência questionada?

É uma situação bem depressiva, eu sempre achei que não me prostituir iria me isentar de sofrer agressões físicas, e estava enganada. Ser travesti é considerado um crime, um crime sem necessidade de julgamento, o análise é instantânea, é logo no olhar que se dá o parecer de criminosa. Cresci acompanhando minhas amigas morrerem e serem esfaqueadas, chegou em um ponto que quando vejo alguma travesti aparecer com uma tatuagem nova… Eu já sei que ela tatuou para esconder alguma cicatriz de facada. Se acostumar com isso é desumano.
- Recentemente, há uma grande briga de grupos de travestis que rejeitam a palavra guarda-chuva “transgênero”, de grupos de transgêneros que combatem o binarismo de transexuais. E os ataques pessoais são constantes entre pessoas trans na internet. Você acha que falta união e entendimento para as diversas vivências trans? 

Eu acho que falta é boa vontade de ambos os lados. De um ponto de vista, existem alguns transgêneros que transicionaram tarde, e se favoreceram de toda uma vida cisgênera. Aceitem ou não, é uma realidade - com todos os privilégios que essa classe possui, seja na educação, na saúde, na família e etc… E que abomina a hierarquia de gênero - assim como eu! - mesmo que essas pessoas se considerem superiores por terem diplomas - criando assim, uma hierarquia academicista. Pergunto, então, onde há coerência nesse tipo de discurso?

É preciso se atentar que o nível de evasão escolar da travesti e da transexual é berrante! Como cobrar que essa classe estude se a própria instituição, profissionais que atuam nela e alunos irão chama-la por um nome que ela abomina? E ai do outro ponto de vista, existem pessoas marginalizadas e excluídas da sociedade que precisam de um amparo mais urgente do que essas outras pessoas transgêneras que já são estabilizadas economicamente.

É de um egocentrismo sem tamanho ser uma pessoa transgênera e dizer para uma travesti que ela precisa ter mais massa cefálica do que silicone no corpo. Isso é Transfobia! Travestis são vítimas de um sistema sexista assim como qualquer mulher cis, procedimentos para alcançar um ponto de chegada estético são apenas um reflexo de uma sociedade doente.

O que acha do termo transgênero? 

Sobre o termo transgênero, eu nunca tive problema com ele, sempre o utilizei pois ele engloba todas as identidades trans*. Agora a forma como essa informação vem sendo repassada para as travestis e transexuais marginalizadas ou “siliconadas” como alguns transgêneros gostam de se referir é que está errada. Foi-se o respeito por um MSC no curriculum.

- É possível um convívio harmônico com todas as categorias? Alguma sugestão? 

Não acho que seja possível pois todas nós temos uma história de vida diferente, somos subjetivas demais apesar de estarmos inseridas em uma letra só. Eu tenho inimizades dentro do movimento e odeio esse tipo de situação.

 Recentemente uma dessas pessoas me pediu a minha jurisprudência para ajudá-la a alterar o prenome e gênero na justiça, nunca passaria pela minha cabeça negar. Imaginei o quanto ela não relutou para me fazer aquele pedido, eu teria feito o mesmo. Repassei sem pensar duas vezes. Acho que harmonia é algo difícil de se alcançar, mas socorrer alguém que passa por situações paralelas as que você passa é o mínimo, o amparo deve ser dado, é uma classe que já é muito humilhada socialmente para estarmos reforçando isso. Só não espere um convite pra tomar um chá! (risos)

- Como foi o seu processo de entendimento da condição trans e a transição? Você teve informação suficiente para lidar com as pressões e opressões?

Não lembro de uma única vez em que me reconheci como “homem”. O espectro daquilo que eu sou psiquicamente se aproximou mais daquilo que é definido como “mulher” durante a minha vida toda. A minha transição foi tranquila, eu rompi laços familiares com quem seria um empecilho - nesse caso o meu pai - e pude assumir a minha identidade para a minha família de forma tranquila e gradativa.

Eu não acordei aos 15 anos e troquei o meu guarda-roupa inteiro, esse foi um processo lento e necessário. Minha mãe sempre soube que eu não era um menino como os outros, esse fato sempre esteve estampado na minha cara… Então, quando eu diagnostiquei essa minha característica e descobri o nome do meu problema, não foi surpresa quando contei a ela que eu era uma menina. Hoje em dia quem compra sapatilha pra mim é ela, só não compra salto porque não acha um que entre no meu pé! (Haha).

- Recorda da primeira vez que se deparou com a palavra travesti? 

Eu devia ter 14 anos e estava navegando pelo falecido Orkut, quando me deparei com as comunidades que a Kimberly Luciana Dias administrava. Foi ali que eu tive o primeiro contato com esse termo e pude me identificar, antes disso eu não tinha representação alguma para me basear…

- Reflitamos: De qual maneira a criação “menino” e “menina” baseada no genital é prejudicial para as pessoas? É prejudicial mesmo quando se trata de uma pessoa cis? Você disse que a transição foi “tranquila”… Foi mesmo? 

Eu digo “tranquila” porque eu conheço casos assombrosos de agressões familiares, mas nunca foi fácil… Eu tive uma infância abortada por não poder ser quem eu queria, só fui me desfazer das minhas bonecas muito recentemente - esse ano - porque elas acumulavam muita poeira. Aos 18 anos eu fazia questão de ir ao supermercado com minha mãe e colocar todo mês uma Barbie no carrinho, era como se ela tivesse me pagando uma dívida. As marcas ficam… 

Esse ano a minha sobrinha nasceu e a minha irmã escolheu um quatro neutro. Até o carrinho dela é marrom, a primeira coisa que eu disse quando vi aquele carrinho horroroso foi “Você é louca? Isso é cor de carrinho de menina?” e ela rebateu - “E se ela não gostar de rosa? Quem tem que escolher é ela, não foi isso que você sempre disse aqui em casa?” E eu percebi que ela tinha aprendido uma lição muito grande observando o meu crescimento, ela é mais velha e sempre cuidou de mim. 

Acho que pude fechar um ciclo e aprender que a gente tem que criar filho pra que ele seja livre, há uma noção social de pais geram filhos para realizarem os sonhos que não puderam, devemos libertar as crianças e não continuar aprisionando-as aos padrões sexistas determinados pelo genital.

- Sempre faço essa pergunta nas entrevistas – é uma curiosidade minha: Qual foi a primeira pessoa trans que você recorda ter visto?

A primeira vez que eu vi uma transexual foi durante o meu ensino médio, quando fiz 15 anos. Por sinal foi ela que comprou a minha primeira cartela de anticoncepcional… Criamos um vinculo muito grande e somos grandes amigas até hoje.

Acho que a maior lição que ela me ensinou foi a do peso que a travesti e a transexual carrega por conta da sua identidade de gênero. A conheci antes da minha transição e pude observar o tratamento desumano que as pessoas davam pra ela, quando percebi que estava me olhando no espelho quando a via, pude prever todo o sofrimento que eu iria enfrentar e nem mesmo isso foi capaz de me parar.
- Você tem contato com ela?

Tenho, é a Paola Maria Menezes (foto acima). Inclusive falei com ela hoje. Ela está bem, cursando estética na Universidade Tiradentes.

- Você já afirmou que não se envolve com rapazes e que até usa uma amiga para dizer que está em um relacionamento sério como estratégia.  Por quê? Os homens ainda são tão escrotos a ponto de você desistir de viver um romance?

(risos). Tenho pavor de homem cis! Inclusive, essa amiga é a Paola. Acho deselegante o fato de estar solteira significar passe-livre para esses homens. Quando digo “estou solteira” eles encaram como uma porta aberta, e é bem longe disso. Prefiro dizer logo “Tenho namorada, sou lésbica!” Pra ver se me deixam em paz.

Os papos são sempre os mesmos,  já teve um que me chamou pra sair e disse que eu ia ter que ir abaixada no banco de trás pra ninguém me ver no carro dele… Acho que passei o dia rindo após ler isso. Não tenho a menor vocação pra ser usada por homem, e nem gosto de homem ao ponto de querer usar algum. Sabe aquela frase da Gloria Steinem “Uma mulher sem um homem é como um peixe sem uma bicicleta”? Pois bem!

- Você já namorou?

Nunca namorei e sempre corri de relacionamento porque sempre observei as relações abusivas que as minhas amigas trans* se encontravam. Tenho conhecimento de situações onde o namorado fazia questão de falar sobre a infertilidade dela só pra machuca-la, não apresentava para a família, para a sociedade, só saia escondido, era casado, tinha outra namorada, tinha vergonha e etc. São tantos casos excessivos que eu evito ao máximo qualquer contato que possa transparecer interesse. Sou bem prática, passou de “boa noite” e não é gay? Tchau.

- Sofia, imagino que muita gente tenha ficado triste por saber que você não tem vida amorosa. Esse lado faz falta? 

Não tenho vida amorosa. O nível de hormônio que eu absorvo é tão alto que não dá nem pra pensar nisso. Fico quase em uma menopausa induzida por mim mesma.

- Bom, você já sofreu um ataque transfóbico que se tornou nacionalmente conhecido. Ainda é difícil falar sobre ele e lembrar que “se tornou estatística”? 

Eu percebo que ainda não tive um tempo para passar pelo “luto”, pelo trauma, pela aceitação… Só fui deixando levar, evito ao máximo falar ou pensar sobre o dia 15 do 5 de 2014. Ainda tenho uma cicatriz no cotovelo que eu também evito passar o olhar, ainda não entrei em um ônibus após o ocorrido, não sei como será para voltar a estudar, já que eu ia de transporte público…

Esse foi mais um direito que a sociedade usurpou de mim, o direito de circular nos espaços públicos sem ser agredida fisicamente - verbalmente eu sempre fui, já estava acostumada. Eu tinha uma ideia na minha cabeça de que só seria morta se eu estivesse inserida na prostituição, mas hoje em dia eu percebo que para matarem uma travesti basta ela se materializar. O ódio a quem quebra o padrão de gênero é tão grande, as pessoas se sentem tão ofendidas com quem não segue suas regras divinas, que a violência é a primeira resposta que conseguem atribuir.

- Algo que a maioria ficou chocada foi com a insensibilidade, passividade das pessoas e até mesmo os risos de algumas mulheres cis. Isso porque existe uma ideia cultural de que as mulheres entendem melhor as diferenças, a comunidade LGBT… É balela?  

Balela demais. A noção de que a mulher é empática é uma construção social. Essa mulher “materna” não existe generalizadamente, a mulher tem o direito de ser livre dessas amarras como qualquer outro homem. Após a agressão que sofri, fui olhar alguns comentários dos sites daqui do meu próprio estado, muitas pessoas que estavam no ônibus comentaram dizendo que haviam mudado o pensamento delas, que na hora da agressão estavam do lado do agressor, mas que após terem visto o meu ponto de vista, a forma que eu encarei o problema, foi que puderam me entender. É preciso que essas pessoas saiam da zona de conforto e vejam com outros olhos as situações que as cercam, estamos acostumados a virarmos a cabeça quando vemos uma pessoa em situação de rua e fechamos o vidro do carro quando nos pedem ajuda… É preciso olhar de outro ângulo, às vezes o nosso ponto de vista está coberto de preconceitos.

- Por conta da página, você é bastante atacada por várias pessoas que se dizem feministas. Por qual motivo?
A socialização que essas meninas (Conhecidas como RadFem ou Terf) receberam foi a mesma do brasileiro padrão comum. Aquela com a noção de que Travestis não são gente, não são humanas e que não merecem sequer habitar o mesmo espaço que as “pessoas de bem”. Nada de novo até ai, o que é contraditório nessa história toda é que são pessoas supostamente esclarecidas que dizem lutar pela emancipação da mulher mas fazem isso pisando em outras, usam de uma falha no movimento feminista para exporem seus preconceitos.

O Feminismo Radical - aquele que essas pessoas idolatram - é uma teoria transfóbica e racista. Existem mulheres negras feministas que abominam o termo “fêmea” por exotificar a imagem da mulher negra, comparando-a a um animal. Mas ai quem disse que essas feministas radicais - 99% são brancas por sinal - se importam com isso? Se elas passam a mão na cabeça do racismo, imagina o que não fazem com a transfobia!

- É muito contraditório a transfobia entre feministas, não?

Sinto uma vergonha imensa quando vejo a bússola feminista apontar em direção transfóbica. Não posso lutar pela minha libertação aniquilando outra classe. Simone de Beauvoir já dizia - “Querer-se livre é querer livre ao outro.” Eu não acho que a vagina deva deixar de ser um simbolo para as mulheres cis, muita da opressão que a mulher sofre - por mais que a vagina não seja visível aos olhos sociais - vem do seu órgão genital. Inclusive eu estava na MDV-Aracaju que foi realizada esse ano e - obviamente - não sofro violência obstétrica, mas estava gritando contra a perpetuação dela no ambiente hospitalar.

Quando uma mulher cis avança, uma mulher trans* avança junto! E vice-versa! Tem que ser assim! Que todas as vaginas sejam livres, mas que isso não seja usado como parâmetro para definir a substância daquilo que é “Ser Mulher”, porque ao fazer isso, estarão excluindo pessoas trans* da mulheridade. Ser mulher é e deve ser sinônimo de liberdade e não de prisão com cadeados e amarras genitalizantes. Uma pessoa que se identifique como homem e acabe por perder o pênis devido a um tumor, irá deixar de ser homem? Uma pessoa que se identifique como mulher e realize uma histerectomia, irá deixar de ser mulher? Há muito mais em nós além do carnal e material.

- Apesar dos pesares, você se considera feminista?

Me consideram feminista, eu estou nessa luta por outras pessoas e não por mim. Dentro da classe mais desfavorecida socialmente - que é a de transgêneros - eu já me encontro bastante privilegiada. O fato de eu ter um local para dormir, ter apoio familiar, não precisar me prostituir e ainda estar inserida no ambiente acadêmico estudando psicologia… É uma chuva de privilégios que eu - aos meus 15 anos - nunca sonhei conquistar. Quando mentalizava o meu futuro só via um borrão repleto de humilhações e constrangimentos, achava que tinha dado um fim a minha vida - antes mesmo de começar a vivê-la - e hoje vejo que estou abrindo portas para que outras - aquelas 90% de travestis e transexuais que de acordo com a ANTRA estão se prostituindo - possam ter as oportunidades que eu tive.

- O que é transfobia? Já parou para pensar por que as pessoas são transfóbicas? 

Eu consigo captar uma piada transfóbica com facilidade porque ela me atinge. Se uma pessoa acha engraçado rir do jogador Ronaldo pelo simples fato de ele ter saído com travestis, quem deve refletir sobre isso é essa própria pessoa. Ela deve se perguntar “Porque eu acho isso engraçado?Porque é motivo de risada se relacionar com travestis? É errado?” Ela achará a resposta sozinha: “Eu sou uma pessoa transfóbica”. Fim. “Por que eu sou uma pessoa transfóbica”.

- Você é estudante de psicologia. De certa forma, é uma maneira que encontrou para se entender ou de entender as pessoas da sociedade em que vive? 

Eu entrei no curso por achar - equivocadamente - que era um ambiente mais acolhedor pra mim. Na época da matricula eu não havia alterado o meu prenome ainda e estava bastante receosa sobre o nome social. Acabou sendo traumatizante de qualquer forma, aprendi da pior maneira - com as expectativas bem altas - que psicólogos não são isentos de preconceitos. Não me arrependo da escolha, me encontrei na área da psicologia social e espero seguir essa direção. Muitas pessoas entram no curso esperando se entender mas na realidade precisam é de terapia, coisa que eu já fazia pela obrigatoriedade que o governo impõe.

- Conta um pouco sobre a sua experiência na universidade…

Já tive brigas de sair chorando da sala - e inclusive já fui chamada de heterofóbica - por defender a sigla LGBT em sala de aula. Uma graduanda evangélica queria fazer um projeto de pesquisa em um grupo que eu participava, onde o tema sugerido por ela era encarar a homossexualidade - ou homossexualismo, segundo a mesma - como um terceiro gênero. Não tenho a menor paciência pra quem tá começando agora (risos).

- Como futura psicóloga, você é a favor da obrigatoriedade do laudo ou da terapia para trans fazerem algumas cirurgias? 

Não, encaro ela como uma violência sem tamanho. Uma terapia compulsória não flui, não tem um ponto de chegada… Ela fica estagnada no tempo. Você não se abre, você não quer sequer estar ali. Dois anos de terapia só prolonga o sofrimento. Essa obrigatoriedade é mais um reflexo do poder da classe dominante - homem/cis/branco. Vemos o mesmo acontecer com as mulheres que querem realizar a laqueadura e são impedidas por médicos que não levam as suas queixas com seriedade.

- Sofia, diante de tudo isso que estamos falando, como é o seu temperamento no cotidiano? 

Me considero bastante temperamental. Erving Goffman costuma falar que a pessoa estigmatizada está alternando entre dois extremos, ou ela se encontra completamente inerte, ou completamente agressiva… Não é diferente comigo e das outras travestis e transexuais. Somos apedrejadas todos os dias, somos alvo de chacota, somos consideradas a excreção que a sociedade para pra rir… Não é de se espantar que uma pessoa que consiga ficar apática a isso também exploda quando a paciência acaba.

- Você acha que a mídia desenvolve um papel positivo na visibilidade da população trans ou ainda é falha? 

A mídia pra mim é o maior culpado pela péssima representação social que a travesti possui, a transexual ainda é favorecida nesse aspecto. As travestis não estão inseridas nas escolas, nas famílias, nos empregos formais, nas faculdades… Então qual será a representação que a sociedade criará da travesti? Aquelas que virem na mídia, que é sempre quando ela é morta, assassinada, estuprada ou quando mata, assalta e se prostitui.

 A sociedade empurra a travesti para à margem e ainda a culpabiliza por isso. A família e o estado são as duas principais instituições que devem promover o bem estar da criança e do adolescente, mas quantos são os casos de abandono quando a família percebe que o filho é gay? Imagina ainda quando esse filho é Travesti? Quando a família abandona e o estado carece de políticas publicas… Só sobra a prostituição. Penso que a prostituição ainda seja uma saída porque sem ela essas pessoas estariam fadadas diretamente a morte, já que indiretamente já estão.

- Lea T, Nany People, Roberta Close, Rogéria ou Ariadna, alguma delas te representa? 

Me identifico mais com a Daniela Andrade. Nenhuma dessas poderia falar por mim, apesar de sofrerem opressões similares as que eu sofro. Não acho que alguma das cinco alguma vez teve o interesse de ser porta-voz de alguma classe. Dentre as que você citou, fico com a Nany People. Acho que a carga de conhecimento que ela possui e acumulou ao longo da vida acabou tornando-a uma pessoa extremamente interessante.

Eu me encontrei na Daniela e até hoje não tive divergência alguma sobre aquilo que ela verbaliza. Assino embaixo quando ela diz que “Travesti não é considerada gente!” porque eu sei que a realidade brasileira é transfóbica. Eu vivo essa mesma realidade, acho que chegou a hora de tirar essa camada de superficialidade que cobre as identidades trans* e encarar o sofrimento de perto. Não vivemos em função de uma cirurgia plástica. Aliás, nem viver podemos, sobrevivemos.

- Existe lado positivo em ser trans?
Eu teria pavor de ser cisgênera! Eu me encontrei na transgeneridade de uma forma incrível, acho que pertencer a um grupo marginalizado te trás uma nova visão e perspectiva do sistema social.Eu nunca seria a favor dos direitos humanos da forma que eu sou se eu não tivesse sofrido na pele o que é ser considerada uma subcategoria humana. A percepção da classe dominante é muito deturpada e rasa… O sofrimento me trouxe um novo ponto de vista capaz de ajudar não só a mim mesma, mas a outras pessoas.

- O que você espera da vida? 


Penso que a Transgeneridade seja a “bola da vez” e que agora seja a hora de aproveitar esse momento para conscientizar o senso comum sobre os anseios, sonhos e aflições das pessoas trans*. Foi-se o tempo onde desperdiçaríamos essa oportunidade para falarmos sobre técnicas cirúrgicas das variadas transgenitalizações… 

É preciso focar na angustia que é simplesmente SER. Quando “Ser” se tornou um crime? Quando ir ao ponto de ônibus se tornou um martírio? Quando um simples passeio se tornou uma tortura? Quando os olhares de nojo e cochichos irão parar? Simples passos para uma pessoa cis, são passos de sofrimento para pessoas trans*. A convenção 169 da OIT - Organização Internacional do Trabalho garante no artigo 1 - A auto-identificação como indígena de qualquer pessoa que assim se intitule. Então porque eu - mulher que nasceu com um pênis - não posso me identificar da forma que verdadeiramente me representa?

- Sofia, qual é o seu sonho? 

Ser doutora…  Calma! (risos). Meu maior sonho é ver a lei João W. Nery ser aprovada.

- Para finalizar, o que dizer para as travestis e transexuais da nova geração? 

Eu me imagino com 15 anos lendo essa mesma entrevista e estando completamente fixada na tela do computador… Queria dizer para as pessoas que estão confinadas em uma carcaça externa por causa da pressão familiar ou social, que isso tudo passa. É possível sair desse cárcere corporal, externalizar a própria identidade e fazer isso com calma e leveza. É possível completar o ensino médio - eu não disse que é fácil! É possível também cursar uma faculdade - com bastante esforço e autocontrole! -

 É possível alterar o nome e o gênero nos documentos sem ter feito a cirurgia de redesignação genital - basta ter foco! E é possível se amar mesmo sendo incomum, não acredite nos livros de biologia! Existem mulheres com pênis sim! Anormal é ser igual… Não deixe que ninguém construa um limite para você, quebre todas as fronteiras e se insira na sociedade, eles terão que te engolir… Seja travesti, transexual ou transgênero! Eu sou travesti e sou diferente de tudo aquilo que impuseram que uma travesti deveria ser.