terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Revista Ler & Saber Autismo :)

A Revista Ler & Saber, da Editora Alto Astral, faz edições especiais de temas como o Autismo. Eu tive a grande sorte de poder participar da elaboração do último número - conversei com a Karina Alonso e ela transformou o que eu disse em linguagem de revista! :) 
Algumas palavras são diferentes, como o uso de "graus de autismo", mas é importante aprender a dialogar com públicos diferentes do acadêmico - afinal de contas é pra isso que a gente estuda! 

Gratidão! :)
Pra ter acesso à revista toda: Loja da Editora Alto Astral








CINE-AUTISMO: PSICOLOGIA EM CONSTRUÇÃO E SOCIEDADE EM DESCONSTRUÇÃO

O Cine-Autismo é meu xodó! 
Primeiro porque foi possível criar, por meio dele, uma rede de apoio, escuta e troca de informações com pessoas criativas e queridas sobre este tema tão intrigante que é o autismo.
Em segundo porque o CRP Bauru abraçou carinhosamente a ideia e viabilizou a existência do cine - gratidão por isso!
Em terceiro porque unir cinema e psicologia é sempre uma boa ideia! 
E em quarto porque ele atraiu comunicadoras cuidadosas que quiseram falar sobre isso:


Ler aqui :)


Com exibição do filme Rain Man, palestra e debate com temática em linguagem, o autismo é exposto e repensado
Karina Francisco
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São escolhidos temas de interesse e dúvida geral, filmes de fácil acesso e o evento é aberto tanto para profissionais e graduandos em psicologia quanto interessados em geral uma vez por mês (Foto: Daniele Fernandes)
Às 19 horas da última quarta-feira (9), no Conselho Regional de Psicologia de Bauru (CRP), realizou-se pela terceira vez o Cine-autismo: Psicologia em Construção. O filme escolhido foi Rain Man, de 1988, para abrir o debate sobre a linguagem com pessoas que tem transtorno do espectro do autismo (TEA). A palestra sobre o assunto foi ministrada pela psicóloga Bárbara Trevizan Guerra, mestra em linguagem pela Unesp de Bauru.
No primeiro encontro, foi exibido o filme Mary e Max e discutido, com Ana Carla Vieira, a história do TEA e os critérios de diagnóstico atuais. No segundo, foi a vez de Temple Grandin, e participação de Helen Cazani discutindo sobre inclusão. Como disse Ana Carla Vieira, psicóloga mestranda da Unesp e curadora do cine-autismo, “a ideia é discutir, estamos construindo algo para os estudos de autismo na psicologia, que são relativamente novos, de maneira atrativa e séria.”
O Filme Rain Main
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O filme Rain Man retrata o cotidiano de autistas e a maneira que interagem no meio social. Foi vencedor de 4 Oscars, incluindo melhor filme (Foto: Divulgação)
Com a exibição do filme Rain Man, grande marco da época em que não se falava sobre o assunto, fica bem exemplificado como as pessoas com TEA se comportam. Após a morte do pai, Charlie (Tom Cruise) descobre que a herança não foi destinada a ele pelo pouco contato que tinham. Querendo descobrir quem era o beneficiário, Charlie descobre que tem um irmão, Raymond (Dustin Hoffman), que é autista e estava internado em uma instituição especializada. Charlie sequestra-o a fim de conseguir sua herança.
Em uma longa viagem até Los Angeles, Raymond mostra uma habilidade matemática com grande velocidade e precisão além de uma excelente memória e Charlie aprende a lidar com o irmão até então desconhecido de maneira menos preconceituosa e com mais cuidado. Emocionante, o filme mostra todas as dificuldades e características das pessoas com TEA.
Palestra e debate
Com exemplos de cenas retiradas do filme, Bárbara Guerra explica a análise do comportamento verbal e como se dá a aquisição da linguagem nos TEA. O personagem Raymond apresenta rigidez comportamental, dificuldade de lidar com mudanças repentinas na rotina, dificuldade em aceitar coisas novas, preferência pelos mesmos objetos, falas repetitivas, déficit de comportamento intraverbal (diálogos) e ecolalia (repetição de palavras ou frases), que são características autistas. Com isso, Bárbara esclareceu de qual forma se estimula e ensina a habilidade da linguagem para pessoas com TEA.
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Ainda não há um consenso sobre a origem e as causas do autismo, mas os estudos têm crescido e existem hoje alguns indícios genéticos e bioquímicos, ou seja, funcionamento diferentes em algumas partes do cérebro (Foto: Karina Francisco)
Assim, discutiu-se sobre o que é comportamento verbal e sua crença de que é apenas oralidade, quando na verdade existe comunicação por fichas, gestos, braile, escrita, pensamento e seleção de imagens de objetos. Bárbara explica que “com crianças atípicas, ocorre uma diferença na aquisição da linguagem em relação às crianças típicas”. Elas não relacionam as palavras de maneira fluente, portanto é importante debater sobre manejo do comportamento verbal, os repertórios alternativos, a comunicação intraverbal (diálogo), muito importante para socialização. “O segredo para manejar o comportamento é a consistência, a insistência.”, finaliza Bárbara.
O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) 
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O debate gerou em torno de como lidar com autistas e dicas de ensinamento e estimulo, além de caracterizá-los (Foto: Karina Francisco)
Existem 1,5 milhões de pessoas com TEA no Brasil. Bárbara Guerra o define como “um conjunto de déficits e excessos comportamentais. (..) É uma condição atípica de desenvolvimento que não é determinante, ter autismo não significa que futuramente você terá determinado comportamento”.
Pessoas com TEA são caracterizadas por ter dificuldade com relações sociais, não sabendo como se expressar ou interpretar outras pessoas. Apresentam um ótimo raciocínio lógico, discurso repetitivo, dificuldade de ler sinais sociais, formalidade em sua linguagem, dificuldade em expressar sentimentos. É uma questão de estímulo, pois seu aprendizado e desenvolvimento exigem maior apoio e atenção. São três características principais observadas: dificuldade de comunicação, dificuldade de especialização e movimento e interesse repetitivo. Assim, há uma grande variedade de características e habilidades dentro da deficiência.
Além da dificuldade nos estudos sobre o transtorno, há também a falta de discussão e consequente desconhecimento sobre o TEA na sociedade, que gera preconceito, desinteresse e falta de apoio. A conscientização e divulgação sobre o tema é importante, pois, quanto mais cedo for diagnosticado, maior a estimulação da potencialidade do indivíduo com a intervenção precoce. Portanto, é importante ficar atento ao desenvolvimento infantil, os pais devem sempre procurar estimular ao máximo seus filhos na comunicação e no aprendizado.
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O TEA apresenta níveis leves, moderados e graves, o que pode interferir na autonomia do indivíduo (Foto: Daniele Fernandes)
Bárbara acredita que “com as condições adequadas de ensino todos podem aprender, podem superar as expectativas.” E como conclui Ana Carla, “para falar de autismo, precisa-se mostrar que existe mais de um tipo de espectro. É múltiplo, e existe uma potencialidade, não apenas o déficit. Se olharmos para o que a pessoa com TEA não tem, não se chegará a lugar nenhum. (…) Costumamos olhar apenas a deficiência, a falta, e deixamos de lado as habilidades pessoais de cada um”.
Serviço
Em Bauru, existe atendimento para pessoas com TEA dentro da APAE, no Centro Especializado em Autismo e Patologias Associadas (CEAPA), na Associação dos Familiares Amigos e Pais dos Autistas de Bauru (AFAPAB) , além da programas na SORRI e a terapia ABA. Além disso, a cidade tem pesquisas no Centrinho da USP e no Programa de Psicologia da Unesp.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Sexualidade, gênero, deficiências e privilégio

Este texto é um amontoado de ideias sobre várias coisas ao mesmo tempo: sexualidade, gênero, deficiências e privilégio. É difícil explicar porque essas quatro coisas fazem sentido juntas, então eu vou falar um pouco sobre cada uma delas, e então amarrar tudo no final :) 
Vamos lá!

DEFICIÊNCIA
O modo como as pessoas com deficiência foram vistas e tratadas variou imensamente ao longo do tempo: houve momentos em que ter uma deficiência era considerado um sinal santo e seu tratamento era sublime; em outros, o sinal era demoníaco e muitas morreram na fogueira. Houve também ações de exclusão e internação em instituições de “saúde” mental e capítulos históricos medonhos, como o holocausto, onde elas morreram massivamente. 
E hoje? 
Existem diferenças sobre como as pessoas com deficiência são tratadas em diferentes lugares e culturas, mas podemos dizer que comparado à desastrosa história que a humanidade construiu com essas pessoas, avançamos bem no processo de inclusão. Isso não significa que estamos confortavelmente localizados em um processo maravilhosamente perfeito - temos muito o que melhorar! 

A primeira coisa essencial que precisamos entender com relação à deficiência é que ela é um 
fenômeno social
Você poderia me perguntar: “Mas a pessoa nasceu sem as pernas, como isso pode ser social? É uma questão biológica!”.

Bem, sim, há dimensões biológicas e orgânicas na deficiência, mas elas não existem deslocadas de um momento histórico nem de uma cultura. Uma reportagem recentemente exibida pelo Fantástico mostrava uma mulher usuária de cadeira de rodas. Ela dizia: "Em Londres, não me sinto deficiente, as calçadas são boas e os locais são acessíveis". É aí que está a dimensão social da deficiência. 
O mundo que conhecemos hoje é organizado para pessoas sem deficiência: as escadas, os cinemas, os motéis, as escolas, os clubes, tudo é pensado para o ser humano considerado “normal” (importante colocar o normal entre muitas aspas).

A ideia central é que a deficiência reflete, na verdade, uma desvantagem social. Se o mundo fosse reorganizado de forma mais democrática, ser uma pessoa com deficiência seria completamente diferente. 
Nos aproximamos, desta forma, de um conceito de deficiência utilizado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em 2008: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”

Cabe a nós, sociedade como um todo, modificar o quadro social para que a inclusão seja uma realidade. Para isso, o que é necessário fazer?
Vamos pensar nisso a partir da seguinte situação:




Os bichinhos estão brincando de fazer chapéu de bexiga. Quando o Porco Espinho solicita entrar na brincadeira, eles precisam refletir: o colega tem algumas características que dificultam sua participação (o espinho certamente furaria sua bexiga!). 
O que deve ser feito para que a inclusão funcione, então? 

( ) Deixa pra lá, não dá pro Porco Espinho ter chapéu de bexiga.
( ) Todo mundo pára a brincadeira.
( ) Tira os espinhos do Porco para que ele possa brincar.
(x) Reinventa a brincadeira de forma mais inclusiva.



Esta fofura de exemplo tem muito a nos ensinar! 
Para promover a inclusão, não é necessário modificar o indivíduo, torná-lo o mais próximo possível do padrão exigido pela sociedade: é preciso mudar a sociedadeNosso papel é modificar os meios sociais de modo que permitamos o acesso das pessoas à educação, ao lazer, ao trabalho. As modificações que precisamos fazer podem ser arquitetônicas, curriculares, de direitos, atitudinais...

Sintetizando, vivemos em uma cultura capitalista competitiva, cuja lógica de mercado se extrapola para outras esferas da nossa vida. Nessa cultura, há ideais a serem alcançados – de beleza, de cultura, de consumo – e eles não têm limites. É uma característica importante deste modelo econômico que tenhamos sempre uma incompletude, algo novo a comprar e atingir, para mantê-lo funcionando. Essa incompletude nos gera infelicidade e sofrimento, de modo que nunca seremos capazes, mesmo se quiséssemos, de atingir os ideais. Para as pessoas com deficiência, esses ideais ficam ainda mais distantes, tornando difícil conviver com essas diferenças.

Temos, então, uma primeira tarefa: 1) Recriar a cultura para que ela seja inclusiva, dando acesso às pessoas em desvantagem para que tenham saúde, educação, cultura, lazer, trabalho.

Mas o que isso tem a ver com sexualidade?

Bem, devido à visão limitante que temos sobre a pessoa com deficiência, restringimos seu acesso a diversas coisas, dentre elas a vivência da sexualidade. Comumente reservamos à ela a posição de infantilização (mesmo quando já são adolescentes ou adultos), de superproteção e incapacidade. Geramos assim um conjunto de atitudes negligentes, como a falta de diálogo sobre a sexualidade, ou não-autorização para que experimentem coisas novas. 


SEXUALIDADE
Quando falamos em sexualidade, é comum que a primeira coisa que nos vêm à cabeça seja o sexo, o ato sexual. Entretanto, sexualidade é muito mais ampla que isso: envolve afetividade, carinho, prazer, amor, valores e regras sociais, identidade, autoestima, imagem corporal, consciência, desenvolvimento emocional, comportamento social, erotismo, desejo, corpo, reprodução, prevenção, cuidados, etc. etc. etc.
Dizemos que a sexualidade é uma dimensão biopsicossocial: envolve aspectos biológicos, culturais e históricos.

Chamamos de educação sexual o processo educativo pelo qual aprendemos sobre sexualidade: ela é contínua (começa quando ainda somos bem pequenos) e se dá tanto de maneira formal (na escola, com um currículo organizado) quanto de maneira informal (por meio de conversas, regras sociais, mídia, discursos religiosos...). 
Quando uma criança pergunta aos pais “De onde nascem os bebês?” e eles ficam envergonhados, corados, fogem da pergunta, estão sendo ensinados sobre algo – que a sexualidade é um tabu! Ou quando um adolescente vai tirar dúvidas sobre sexualidade com os professores e recebe um sermão sobre doenças, gravidez e perigos, estão sendo ensinados também – que a sexualidade é danosa, suja. 

As pesquisas mostram que a educação sexual dos jovens e adolescentes brasileiros é deficitária, envolvida por crenças e conhecimentos desencontrados que os confundem. Hoje, eles representam a parcela da população mais frequentemente infectada com o vírus HIV – claramente estamos falhando em algum lugar. 

Quanto às pessoas com deficiência, este processo é ainda mais deficitário: existem crenças populares, mitos sobre sua sexualidade, como a hiperssexualidade (“ah, eles têm desejos incontroláveis!”); assexualidade (“eles não têm sexualidade”); impossibilidade de terem relacionamentos ou serem desejáveis; incapacidade de reprodução ou cuidados de família.

Acontece que a sexualidade é uma dimensão humana: os processos de construção são diferentes de pessoa para pessoa, mas ela acompanha todos nós durante a vida inteira. Aqui temos, então, nossa segunda tarefa: 2) Desconstruir essas ideias errôneas acerca da sexualidade das pessoas com deficiência para que elas possam viver de forma mais libertária.


GÊNERO
O conceito de gênero é polêmico e tem sofrido constantes transformações. O essencial sobre ele é saber que: o que é considerado feminino ou masculino em cada cultura é construído histórico e socialmente
Utiliza-se frequentemente as diferenças anatômicas entre as pessoas para justificar esta separação entre homens e mulheres, e atribui-se seus gostos, papéis sociais, desejos e sentimentos a partir dessas características orgânicas. É por isso que precisamos ficar atentos: a naturalização do gênero traz sofrimentos a muitas pessoas que não correspondem aos padrões “normais” e “ideais”.


Neste sentido, temos mais uma tarefa: 3) desconstruir a fixação de gênero e assumir que a sexualidade é múltipla, pode ser vivida de inúmeras maneiras, ser realizadora em seus diferentes aspectos. 


PRIVILÉGIO
No dicionário, privilégio está descrito como um direito, uma vantagem, uma licença. Para refletir sobre essa ideia vamos analisar a seguinte imagem:
"Para uma seleção justa, todo mundo deve passar pelo mesmo exame: escalar aquela árvore!"
Na imagem, está expressa uma situação de exame (como ocorre com o vestibular ou em seleção de empregos) e o avaliador indica que os candidatos devem escalar uma árvore - mesmo que alguns deles não tenham características necessárias para escalada!

Em outras palavras, significa que em determinados contextos algumas características representam privilégios. Vamos trazer isto para nossa realidade:
Vivemos em uma sociedade: capitalista (valoriza o poder de consumo); colonizada historicamente por europeus e marginalizadora de negros e índios; heteronormativa (parte do princípio que gostar do sexo oposto é a única maneira correta de viver); cisnormativa (acha um absurdo que a pessoa se identifique com o outro gênero); gordofóbica (santifica a magreza); patriarcal (faz de tudo para manter a mulher em uma posição desprivilegiada); religiosa (mantém fortes seus princípios religiosos católicos e evangélicos, demonstrando intolerância contra outras matrizes ou contra ateus); as escolas são organizadas em séries coletivas (desconsiderando necessidades individuais dos alunos), e assim por diante.

Só por esta breve descrição, já é possível perceber que: um homem, branco, heterossexual de classe alta será melhor aceito e terá vantagens em uma porção de situações se comparado a um homem, negro, pobre, homossexual. 
Este homem, negro, pobre, homossexual e evangélico, terá vantagens se comparado a uma mulher, trans, pobre, umbandista.
Assim por diante podemos perceber que todos temos privilégios em alguns aspectos e situações quando comparados a outras pessoas. 
Nessa lógica, a pessoa com deficiência está sempre em desvantagem com relação à pessoa sem deficiência (porque como já comentei, o mundo é organizado para pessoas sem deficiência).

Sabendo que todos temos privilégios, o que fazer? Nossa quarta tarefa: 4) Reconhecer os privilégios que possuímos, lutando para que a desigualdade seja diminuída.

(Sobre reconhecimento de privilégios, quem puder assista esse vídeo aqui do Canal das Bee que é muito lindinho!)


JUNTANDO TUDO: SEXUALIDADE, GÊNERO, DEFICIÊNCIAS E PRIVILÉGIO.
Muito bem, agora que já entendemos o que é cada uma dessas coisas, vamos para o que interessa: o que elas significam juntas!

Começando por uma inocente busca no Google, quando digitamos "sexualidade e deficiência" nas imagens, aparece o seguinte:






São bonitinhas e sem dúvida representam avanços na maneira como nossa sociedade vê a sexualidade das pessoas com deficiência. Mas vamos mais fundo: o que elas têm em comum? 
Os casais são: 1) heterossexuais (relacionam-se com pessoas do sexo oposto); 2) cisgêneros (suas identidades de gênero são semelhantes às esperadas a partir do seu corpo biológico, ou seja, eles não são trans); 3) aparentemente de classe sócio-econômica média ou alta; 4) são brancos.

Eles representam todas as pessoas com deficiência?
Definitivamente, não.
Como tudo o que se vê na mídia, eles são minimamente próximos a padrões sociais de "normalidade". Assim como as imagens um pouco mais eróticas que seguem abaixo:





O que quero dizer é: dentre as pessoas com deficiências também há privilégios.

Por exemplo: o homem com deficiência heterossexual tem vantagens com relação ao homossexual; o cisgênero tem vantagem em comparação ao trans; a pessoa com um corpo próximo aos padrões tem vantagem com relação a uma pessoa gorda, e assim por diante. 

Materiais alterativos, como este ótimo ensaio e filmes como o Hoje eu quero voltar sozinho (que conta a história de um adolescente com deficiência visual que é gay) têm aparecido, felizmente, para que a representação seja mais democrática. 






Ótimo. Continuemos:
Considerando, ainda, que os homens em nossa sociedade possuem privilégios com relação às mulheres em grande parte das situações (trabalho, direitos, participação política, cobranças estéticas, expectativas pessoais) pode-se dizer que a mulher com deficiência está em desvantagem com relação ao homem com deficiência.

Além de chegar a esta conclusão pela junção dos conceitos trabalhados até aqui, alguns dados de pesquisa corroboram com a ideia da DESVANTAGEM DA MULHER COM DEFICIÊNCIA ou do PRIVILÉGIO DO HOMEM COM DEFICIÊNCIA. Vamos ver:


• O casal norte-americano Mary e Jerry Newport, diagnosticados com Síndrome de Asperger (ou TEA), dizem houve dificuldades para ambos com relação ao desenvolvimento sexual, mas que no caso da mulher a vulnerabilidade ficou mais evidente. Ela sentiu uma pressão muito forte durante a adolescência com relação à aceitação social, o que a levou a manter relacionamentos sexuais abusivos. Além disso, sendo tida como “madura”, por ser menina, foram oferecidas a ela drogas e companhias danosas de forma muito mais frequente, se comparado ao marido (Newport e Newport, 2002).

• Alguns autores comparam a baixa autoestima com o aumento da vulnerabilidade. Considerando que a autoestima é construída pelo olhar do outro e que as mulheres são vítimas maiores de cobranças estéticas que os homens, se tornam também mais vulneráveis neste sentido (Camargos e Teixeira, 2013). 

• As preocupações dos pais de meninas com deficiência se relacionam a padrões esperados socialmente para mulheres: casar-se, ter filhos, conseguir cuidar de uma família, conseguir manter um marido, serem simpáticas e fazerem serviços domésticos (Camargos e Teixeira, 2013).
(onde fica a felicidade da menina aqui, não se sabe)


• Dupla desvantagem e vulnerabilidade: “As relações de gênero são fortemente marcadas nas mulheres com deficiência, pois, devido ao histórico processo de infantilização e dependência familiar em que estão submersas, as características de fragilidade feminina são intensificadas. Assim, elas são superprotegidas pela família em razão de violência e abuso sexual; e, frequentemente, são vistas como incapazes de exercer os papéis que são atribuídos às mulheres sem deficiência, tais como constituir família, cuidar dos filhos e das atividades domésticas” (Dantas, Silva e Carvalho, 2014).
• Comparando experiências de meninos e meninas com deficiências a dificuldade de fazer e manter amizades é mais intensa no caso das meninas – porque não conhecem sobre assuntos frequentes, como moda. Além disso, as meninas são vistas como mais vulneráveis aos abusos – porque mulheres são mais vulneráveis por inúmeras razões – e isso preocupa muito as famílias, restringindo muitas vezes seu acesso a experiências sexuais (Cridland et al., 2014).

• O estudo de Gesser, Nuernberg e Toneli (2013) é uma fonte incrível de dados sobre esta questão. Eles entrevistaram oito mulheres com deficiência física e obtiveram relatos sobre como elas se sentem em diversos aspectos. Alguns trechos estão transcritos abaixo para que fique clara sua desvantagem social:

"Eu me sinto mais mal por ser gorda do que por ser deficiente"

"Ah, eu acho assim, eu queria ser mais magrinha, sabe? Ter um corpo mais bonitinho, né?"

"A minha vontade era de ter um corpinho esbelto, tudo, então sempre queria emagrecer"

"Dessa parte assim pra baixo ... já evito me olhar um pouco, sabe? ... Porque o corpo ficou deformado, ficou demarcado (pela lesão); e ... é um pouco assim, é o próprio corpo da gente que é defeituoso, tem cicatrizes" 

"é o próprio corpo da gente que é defeituoso, tem cicatrizes. Eu penso que aí vai ter a cobrança, né? E também assim, a vergonha também um pouco que a gente tem"

"Eu acho mais difícil para a mulher (ser deficiente) porque aí a mulher não pode fazer nada dali, né? ... E tudo que se faz ... é a dona da casa que faz" 

"É tudo no limite, né? Porque eu não posso correr, não posso fazer uma porção de coisas, né? ... Varro a casa, às vezes varro aqui, mas não varro embaixo da cama, porque não aguento a dor"


"Eu tinha muita depressão, tentei suicídio três vezes, porque eu via o meu filho na cama e eu sem poder fazer nada. ... Então, ali eu achei que eu não valia mais nada, que eu era um pedaço de isopor que você põe na água e vai embora"

"O marido botava tudo dentro de casa, mas depois ele virou a beber ..., ele chegava a virar a mesa com tudo em cima" alegando ter o direito, por sustentar a casa e os filhos. 

"Daí ... começou a tomar, beber, sabe? Daí, começou a me incomodar, começou a me bater, né? Chegou a me bater muitas vezes."

"... é que ele ligava em casa pra mim, né? Quando eu não estava, daí a minha mãe metia a língua nele, chamava ele de sem-vergonha, de vagabundo, de tudo quanto era coisa, que ele queria comer só o que eu tinha de herança. Se ele não tinha vergonha de namorar com uma deficiente".

"Era só pá pum e deu, né? Acabou. Só servia pra ele, pra mim nada .... Então, eu me sentia assim .... Meu Deus! Parece que eu sou um pano de chão: usa, vira, vira do lado e deu?"

Os relatos de quem vivencia a experiência de desvantagem social deveriam ser suficientes para que seus direitos sexuais fossem garantidos.
Mas existe sim uma ajudinha legal: tanto a Declaração dos Direitos Sexuais (1997, 2014) quanto as citações na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) asseguram o direito de decisão sobre o próprio corpo; de acesso à informação e educação sexual adequada; de reprodução e saúde sexual; de vivenciar o prazer.

Temos, portanto, tanto enquanto profissionais da Psicologia, quanto como cidadãos, cinco tarefas essenciais relacionadas a este tema:


1) Recriar a cultura para que ela seja inclusiva, dando acesso às pessoas em desvantagem para que possam ter saúde, educação, cultura, lazer, trabalho.
2) Desconstruir ideias errôneas acerca da sexualidade das pessoas com deficiência para que elas possam viver de forma mais libertária.
3) Desconstruir a fixação de gênero, assumindo que a sexualidade é múltipla, pode ser vivida de inúmeras maneiras e ser realizadora em seus diferentes aspectos.
4) Reconhecer os privilégios que possuímos, lutando para que a desigualdade seja diminuída.

5) Utilizar todas estas tarefas acima para o reconhecimento da vulnerabilidade da pessoa com deficiência, especialmente da mulher, e lutar por ela por meio de nossos privilégios sociais.

Não estou dizendo que: será fácil.
Não estou dizendo que: será do dia para noite.
Não estou dizendo que: a mudança será total.
Mas estou dizendo sim que é nossa obrigação pensar sobre este assunto e refletir sobre quais ações podemos fazer para modificar estas realidades. 
Vamos?


Referências utilizadas:
ARANHA, M. S. F. Paradigmas da relação da sociedade com as pessoas com deficiência. Revista do Ministério Público do Trabalho, n. 21, p. 160-173, 2001.
CAMARGOS JR, W; TEIXERA, I. A. Síndrome de Asperger em mulheres. In: CAMARGOS JR., W. Síndrome de Asperger e outros Transtornos do Espectro do Autismo de Alto Funcionamento: da avaliação ao tratamento. Belo Horizonte: Artesã, 2013. p. 87-106.
CRIDLAND, E. K.; JONES, S. C.; CAPUTI, P.; MAGEE, C. A. Being a girl in a boy’s world: investigating the experiences of girls with autism spectrum disorders during adolescence. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 44, 1261-1274, 2014.
DANTAS, T. C.; SILVA, J. S. S.; CARVALHO, M. E. P. Entrelace entre gênero, sexualidade e deficiência: uma história feminina de rupturas e empoderamento. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 20, n. 4, p. 555-568, 2014.
GESSER, M.; NUERNBERG, A. H. Psicologia, sexualidade e deficiência: novas perspectivas em direitos humanos. Psicologia: ciência e profissão, v, 34, n. 4, 850-863, 2014.
GESSER, M.; NUERNBERG, A.; TONELI, M. J. Constituindo-se sujeito na intersecção gênero e deficiência: relato de pesquisa. Psicologia em estudo, v. 18, n. 3, p. 419-429, 2013.
MAIA, A. C. B. Reflexões sobre a sexualidade da pessoa com deficiência. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 7, n. 1, p. 35-46, 2001.
MAIA, A. C. B.; RIBEIRO, P. R. M. Desfazendo mitos para minimizar o preconceito sobre a sexualidade de pessoas com deficiência. Revista Educação Especial, Marília, v. 16, n. 2, p. 159-176, 2010.
MAHONEY, A. POLING, A. Sexual abuse Prevention for People With Severe Developmental Disabilities. Journal of Developmental Disabilities, v. 23, p. 369-376, 2011.
NEWPORT, J.; NEWPORT, M. Autism-Asperger’s & sexualitypuberty and beyond. Arlington, Texas: Future Horizons, 2002.
OMOTE, S.; OLIVEIRA, A. A. S.; BALEOTTI, L. R.; MARTINS, S. E. S. O. Mudanças de atitudes sociais em relação à inclusão. Paidéia, v. 15, n. 32, 387-398, 2005.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Dalai Lama e o Mito da Beleza

Há dias em que felizes coincidências acontecem. 
Enquanto estudava um livro da Naomi Wolf, chamado “O mito da beleza” fiz uma pausa, entrei na internet e me deparei com a nota publicada por Nathalí Macedo para o Geledés sobre o recente comentário público de Dalai Lama (que pode ser vista integralmente aqui)
Aí, pumba! A relação entre uma coisa e outra foi inevitável...


A Nathalí escreveu: "Dalai Lama é um guru. Ganhador do prêmio Nobel da Paz, com um discurso de igualdade e declaradamente feminista: em tese, um homem em que se pode confiar. Por isso mesmo minha surpresa descontente com sua última afirmação: Dalai gostaria de ser sucedido por uma mulher atraente. ATRAENTE. Ele poderia querer ser sucedido por uma mulher sábia, espiritualizada ou socialmente comprometida. Mas quando se fala de mulheres – seja lá qual for o assunto – há muitas outras coisas que são lembradas e mencionadas em detrimento de nossa própria condição humana. Somos julgadas – para o bem ou para o mal – primeiro por sermos mulheres, e depois por sermos seres sociais como quaisquer outros [...] E mesmo nas situações mais cotidianas e banais ser mulher tem um preço: se cometemos uma imprudência no trânsito, ninguém grita através da janela “IMPRUDENTE, IRRESPONSÁVEL!” O som é quase sempre o mesmo: Puta! [...] O que eu espero da sucessora de Dalai Lama é alguém que – atraente ou não – enxergue que mulheres são muito mais que beleza e graciosidade, e que a plenitude espiritual passa inevitavelmente pela ideia de igualdade e respeito. E que mostre ao mundo – como muitas de nossas companheiras já têm conseguido – que mulher nenhuma precisa ser atraente para assumir o seu papel no mundo".

Nesta nota, Nathalí fala sobre a supervalorização da beleza em detrimento de outras características da mulher – justamente o que Naomi Wolf denominou “O mito da beleza”, em 1991. 
A feminista norte americana fez uma relação muito interessante sobre o crescimento da mulher enquanto figura ativa no cenário sócio-econômico e o aumento de distúrbios de alimentação, cirurgias plásticas, consumo e pornografia. Segundo comenta, “trinta e três mil mulheres americanas afirmaram a pesquisadores que preferiam perder de cinco a sete quilos a alcançar qualquer outro objetivo”. E ainda que “existe uma subvida secreta que envenena nossa liberdade: imersa em conceitos de beleza, ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle”. Não é nada difícil ver essa característica em nosso cotidiano: olhemos para nós mesmas e para os outdoors, revistas e filmes: o desespero está estampado.

Este tal mito da beleza substituiu outros mecanismos de controle históricos de forma eficaz, pois embora estejamos muito mais inseridas no mercado de trabalho e nos movimentos como um todo, continuamos aprisionadas a este julgamento estético. Ele  “se fortaleceu para assumir a função de coerção social que os mitos da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não conseguem mais realizar. Ela procura neste instante destruir psicologicamente e às ocultas tudo de positivo que o feminismo proporcionou às mulheres material e publicamente”. Isso significa, em termos práticos, que até pode ser que uma mulher seja considerada uma boa monja, solidária, inteligente e habilidosa em liderança, mas ainda assim deve ser atraente – enquanto nunca ouvi uma única palavra sobre a careca ou a pancinha de Dalai Lama.

Mas o Mito da Beleza não é somente sobre aparência: “Na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência. A juventude e (até recentemente) a virgindade foram "bonitas" nas mulheres por representarem a ignorância sexual e a falta de experiência. O envelhecimento na mulher é "feio" porque as mulheres adquirem poder com o passar do tempo e porque os elos entre as gerações de mulheres devem sempre ser rompidos. As mulheres mais velhas temem as jovens, as jovens temem as velhas, e o mito da beleza mutila o curso da vida de todas. E o que é mais instigante, a nossa identidade deve ter como base a nossa "beleza", de tal forma que permaneçamos vulneráveis à aprovação externa, trazendo nosso amor-próprio, esse órgão sensível e vital, exposto a todos”. Ele é um chute em nossa autoestima e segurança que nos força a emitir uma porção de comportamentos em busca do ideal.

Essa busca nos ocupa; e esta ocupação com a beleza é um “trabalho inesgotável porém efêmero que assumiu o lugar das tarefas domésticas, também inesgotáveis e efêmeras”. Inclusive para mulheres ocupadas o suficiente com outras tarefas, como figuras públicas e líderes. Sobre isso, Naomi comenta: Quando se atrai a atenção para as características físicas de líderes de mulheres, essas líderes podem ser repudiadas por serem bonitas demais ou feias demais. O resultado líquido é impedir que as mulheres se identifiquem com as questões. Se a mulher pública for estigmatizada como sendo "bonita", ela será uma ameaça, uma rival, ou simplesmente uma pessoa não muito séria. Se for criticada por ser "feia", qualquer mulher se arrisca a ser descrita com o mesmo adjetivo se se identificar com as idéias dela. As implicações políticas do fato de que nenhuma mulher ou grupo de mulheres, sejam elas donas-de-casa, prostitutas, astronautas, políticas ou feministas, podem sobreviver ilesos ao escrutínio devastador do mito da beleza, ainda não foram avaliadas por inteiro. Portanto, a tática de dividir para conquistar foi eficaz”.

Quer dizer, as táticas de dividir estão tentando ser eficazes. Porque se depender de nós, não passarão – viu, Dalai Lama? Mesmo vindo de você, pessoa que fala coisas bonitinhas sobre a vida e que eu compartilhava no Instagram. Hun.