terça-feira, 23 de junho de 2015

Sobre novelas brasileiras e beijos na boca.

As últimas semanas foram marcadas por polêmicas com relação à rejeição e boicote da novela "Babilônia" (da Globo) na qual há um casal de mulheres idosas interpretadas por Fernanda Montenegro e Nathália Timberg.

A Flávia Nosralla (jornalista do RepórterUNESP) teve a ótima ideia de incluir uma discussão sobre isso na última edição da revista e eu tive uma participaçãozinha. Pra ler na íntegra, dê uma clicada aqui.

Conversando com ela sobre isso foi possível registrar algumas ideias e reflexões, que estão transcritas no texto abaixo :) 

Super bacanudo esse infográfico que eles incluíram na reportagem...
Mas *esperando ansiosamente* o dia em que não precisaremos mais contar nos dedos quem é hetero, homo, bi, trans, e poderemos falar simplesmente em pessoas se relacionando com pessoas (o quão difícil pode ser entender isso?)


Para discutir a questão da homossexualidade nas mídias, é necessário pensar um pouco sobre a ideia de normatividadeNormativo é o indicado como valorizado por um grupo social, é aquilo que se pensa como correto, ideal. Em nossa sociedade, por exemplo, é clara a normatividade do corpo magro, da cor de pele branca, da classe financeira alta de consumo, da heterossexualidade, da família nuclear, das pessoas sem deficiência. Ou seja, existem "normas", mesmo que não explícitas, sobre o que é valorizado e desejado.
Um conceito que deriva deste é o de heteronormatividade: conjunto de ideias que indica como "correto" o padrão heterossexual de relacionamentos. Isso fica muito claro nos discursos cotidianos e nos materiais midiáticos.

Dito isso, vamos pensar sobre a aceitação - ou não - das personagens nas telenovelas.

Ela se deve à inúmeros fatores: Félix, por exemplo, conquistou o público de forma positiva e correspondia em certas medidas a um estereótipo, mas para além disso era uma personagem complexa, contraditória, ambígua e muito bem interpretada pelo Matheus Solano. O fato de ter se envolvido com outro homem em um relacionamento que poderia ser considerado normativo (seu parceiro tinha um emprego de alto padrão, era branco, tinha filhos...) provavelmente impulsionou a aceitação. O beijo das personagens no último capítulo foi sim um momento importante da televisão brasileira - já que até então a representação afetivo-sexual entre pessoas do mesmo sexo era feita por meia de abraços simplesmente. Mas ainda assim com normatividadescomo citei anteriormente: era um casal construindo uma família nas "normas".

Com relação à Marina e Clara foi muito interessante a aparição delas - embora possa ser feita a mesma crítica que no caso de Félix. Elas eram magras, ricas, bonitas, muito próximas aos padrões sociais desejáveis. Mesmo assim, a aceitação parece ter sido diferente, mas isso não deve ser uma surpresa. Existe uma invisibilidade em torno dos casais lésbicos muito incômoda. Pergunte às amigas lésbicas e elas contarão sobre como é chato ir acompanhada à balada e ter que aguentar piadas sobre o desejo dos homens de fazer um "a três" ou o desrespeito dos mesmos quando percebem a configuração. Essa invisibilidade parece se repetir nos casais do BBB e até mesmo em Marina e Clara.

Neste sentido, o casal Estela e Teresa são uma quebra de "normas sociais" ainda maior, pois ambas são idosas. Em nossa sociedade, existe a ideia de que os idosos não têm sexualidade, trazendo péssimas implicações como a falta de privacidade nas instituições que moram ou em suas próprias casas e descuidos com relação à sua saúde sexual. Embora ainda seja um casal que atinge alguns padrões sociais (especialmente financeiro), o fato de quebrarem a heteronormatividade E a crença de que as pessoas idosas são assexuadas provavelmente contribui para que alguns telespectadores rejeitem o casal.

Alguns pontos para reflexão:

- A rejeição das aparições de Estela e Teresa ficam muito claras especialmente nas redes sociais e nos canais de reclamação da Globo. Entretanto, não temos medidas do quanto também houve mudanças positivas e aceitações em pessoas que antes não refletiam sobre este assunto. Parece-me que há uma mobilização de alguns grupos sociais para repelir essas aparições e esforços midiáticos para reafirmar essa rejeição, e isso me faz concluir que  é precipitada a conclusão de que há, de fato, uma rejeição majoritária de Estela e Teresa.

- As novelas brasileiras são o grande veículo de normatividade na mídia: elas ditam regras o tempo todo. Desde as mais simples, relacionadas à moda, esmaltes e cortes de cabelo, até as mais complexas como padrões de comportamento.

Neste sentido, grupos inteiros deixam de ser representados nas novelas ou o são de maneira desvalorizada: os negros que ainda hoje são minorias no elenco; as diferentes configurações familiares (em geral, mostra-se pai, mãe e filhos, deixando de lado as famílias formadas por avós, tios, tribos, instituições, etc); a própria adoção por muito tempo foi retratada de uma maneira negativa e polêmica. 

Foi através das lutas dos movimentos sociais por representatividade que se tornou possível iniciar a inclusão da diversidade nas novelas - e ainda assim, vamos devagar. As pessoas com deficiências continuam sendo pouco representadas, por exemplo. No caso dos "casais homossexuais" (que seria ótimo se pudéssemos chamar de casais e ponto) é importante que eles estejam presentes nas novelas pela questão da representatividade. Mas há muito o que avançar em outros aspectos, pois essa representação continua sendo feita dentro de uma normatividade.