quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Pedacinhos de histórias: violências do nosso todo-dia.

Para entrar no clima do post, assistam este vídeo: Micromachismos. É curtinho, nem precisa ligar o som (indicação da Marina Zotesso ).

Este é um texto escrito por diversas mãos. 
Saiu de uma conversa sobre as pequenas-grandes violências que sofremos em nosso dia-a-dia por sermos mulheres. 
A ideia de expor pedacinhos de nossas histórias é que outras pessoas leiam e:

• Primeiramente, percebam que há violências neles. 
• Sintam-se identificadas, vejam que indignar-se é necessário.
• Notem que algumas atitudes que costumamos enfrentar e discursos que frequentemente ouvimos, não são naturais. Devem deixar de acontecer. 

Nos entristece que ainda tenhamos histórias* como estas, a seguir, pra contar. Mas nos torna fortes saber que não estamos sozinhas.

1) Sobre andar na rua.

Ser mulher em uma sociedade machista significa que até mesmo sair para andar na rua pode ser um desafio - bem desagradável. Alguns discursos delirantes dizem que nós, mulheres, temos que nos sentir "lisonjeadas" por mexerem conosco. Afinal, estamos sendo aprovadas por um bando de machos.
Não, não é assim que nos sentimos:

"Não saio mais para caminhar na cidade. Mesmo com fone de ouvido e ouvindo música alta, não dá para aguentar os homens te encarando, mexendo e falando coisas do tipo 'queria te chupar inteirinha'. Agora só vou à academia ou em parques próprios pra isso. Caminhar na rua sozinha nunca mais., Araraquara/SP.

A semana começou em um bloquinho de carnaval, felizmente foi um bloquinho tranquilo, e somente no final alguns homens começaram a ser inconvenientes, um deles me segurou pelo braço enquanto eu passava e o outro, quando levou um fora, me chamou de chata. Esse segundo me deixou revoltada, porque o chato e abusado no caso foi ele. NÃO É NÃO. Durante a semana eu fiquei muito tempo em casa porque tinha bastante coisa do mestrado para fazer, logo eu fui "pouco" assediada. O que é mais triste ainda, pensar que para não sermos assediadas precisamos ficar em casa, quando cheguei a esse conclusão me peguei mais uma vez revoltada e triste. De qualquer jeito, na quinta-feira fui ao shopping tomar um sorvete, e como o shopping é do lado de minha casa sempre vou vestindo o que estiver usando em casa, a não ser seja um pijama - mas confesso que já fui de blusa de pijama sim, hahaha. Enquanto descia a escada rolante tomando meu sorvete fui secada por dois amigos, aquilo me deu um nojo, e eu parei de tomar/chupar meu sorvete na hora para frear qualquer pensamento machista que eles pudessem ter. Voltei pra casa com vontade de tacar a minha casquinha no meio da cara dos dois.” , Bauru/SP.


Elogio? 

2) Sobre desvalorização e assédio no trabalho.

O assédio no trabalho é tão recorrente que existem estudos especificamente sobre este assunto, e algumas leis trabalhistas voltadas para este contexto. 
É muito frequente nos depararmos com situações nas quais: desempenhamos a mesma função de um colega homem, e este ganha mais; descredibilizam nossos discursos usando justificativas distantes do trabalho como "Você está levando para o pessoal" ou "Você está louca!". Enquanto isso, na mesma situação, com funcionários homens, há argumentações bem elaboradas.
No caso específico das universidades, o abuso contra mulheres é feito de diversas formas: desde o momento do trote (em algumas universidades, as meninas têm que desfilar, são "leiloadas" a seus veteranos, sofrem estupros), até a pós graduação, momento no qual podem ser intimidadas com ameaças de cortes de bolsas e projetos. Nem mesmo as professoras estão isentas: frente a pares homens, muitas vezes são silenciadas. 

“[no espaço acadêmico] Colega homem faz exatamente a mesma coisa [que eu já fiz] = Muito bem colocado, obrigado! Eu falo cinco vezes que o experimento precisa ter isso e isso = nada. Colega homem fala uma vez que o experimento precisa ter isso e isso = Noooooossa! Bem pensado! Nunca tinha percebido!." , São Carlos/SP.

"É muito comum, na universidade, alguns professores se sentirem à vontade demais em situações nas quais não estamos dando nenhum sinal de interesse. Às vezes são coisas mais discretas, como toques nas costas, no ombro ou nas mãos. Às vezes um jeito invasivo de olhar. E em alguns momentos chegam a convites para sair, mensagens. Tenho a impressão que eles sentem que podem fazer isso porque estão em uma posição privilegiada., Bauru/SP.

3) Sobre os assédios e invasões de espaço

Frequentemente sentimos nossos espaços invadidos. Espaços físicos. 
Parece que há uma autorização para entrar no que é nosso, mas essa autorização não foi dada por nós! Foi dada por uma prática cultural ridícula na qual os homens aprendem que podem roçar em nós no metrô, no ônibus, na rua. 
NÃO PODEM. 

“[sobre carona para ir de uma cidade a outra] Teve uma semana que eu tava bem cansada e resolvi pegar carona ao invés de oferecer. Bom, só tinha menino oferecendo, então acabei fechando com ele mesmo - sim, é óbvio que prefiro sempre pegar carona com mulher pra não correr nenhum 'risco'. Pois bem, no carro só tinha eu de mulher e mais três meninos de carona. No meio da viagem o menino que tava no meio do banco de trás começou a 'abrir a perna', tipo me apertando no canto do carro. Achei ele mega folgado e sem noção, coloquei minha bolsa entre a gente pra ele se ligar que tinham três pessoas atrás e que não rolava ser o folgado. Ok, acho que ele percebeu e a viagem seguiu de boa. Até que eu cheguei e casa e o infeliz me mandou uma mensagem inbox, mais folgado ainda, querendo sair. Aí eu fiquei me perguntando: em que momento dei essa liberdade?! Em que momento passei meu face ou qualquer outro contato?! Em nenhum! O babaca só era um machista achando que podia dar em cima de qualquer pessoa. Assim, fiquei puta!” , Ribeirão Preto/SP.

Existe um público que tem autorização científica para fuçar em nosso corpo, mas não necessariamente faz isso de forma ética. Neste caso, falamos especificamente sobre os médicos, entretanto situações parecidas podem ocorrer com outros profissionais da saúde com funções similares: enfermeiros, dentistas, fisioterapeutas, etc.

Eu tenho mil histórias pra contar. Como todas nós, né. Mas a mais recente fui eu ficando encucada com a minha última ida ao ginecologista - fui num cara que não era meu gineco usual - e, assim que ele viu minha tatuagem, que fica abaixo dos seios, começou a fazer MAIS perguntas sobre minha vida sexual. "Sente dor no sexo?"; Tudo ok."Vida sexual ativa?"; Sim. "Quanto tempo com o último parceiro?"; Respondi. "Apenas um?" Er... sim. "Sexo anal?" Er... já fiz. "Gosta?" ??? Isso tudo enquanto enfiava um espéculo em mim e fazia o papanicolau. Eu fiquei na dúvida se ele apenas estava perguntando mais porque tinha um estilo diferente do meu anterior, ou se era só porque era a primeira consulta, ou se era tudo coisa da minha cabeça porque a tatuagem é recente e não tinha ainda encarado mostrar ela pra médico... Mas é aquela coisa. Um exame invasivo, perguntas invasivas e a gente é posta como louca se acha o cara invasivo, afinal mulher tem de se acostumar a abrir as pernas desde a adolescência por saúde pra esses caras misóginos nos examinarem... Bom, nunca mais volto nesse aí.” , Salvador/BA.



4) Sobre a pressão social para cumprir determinados papéis.

Ainda hoje existe uma espécie de fantasma que ronda nossas vidas dizendo baixinho ao pé do ouvido "seu lugar é em casa!" ou "você precisa ter filhos, casar, passar, lavar, cozinhar e sorrir". E o pior de tudo é que esse fantasma fica escondidinho. Nós o ouvimos numa frase aqui, em outra ali.

Mas o pior foi hoje....no feriado. Meus pais moram em um condomínio onde tem muitas crianças e adolescentes que ficam brincando na rua. Então eu escutei a minha mãe contar que o porteiro estava falando - vai vendo - de duas meninas que ficavam andando com alguns meninos. Ela pensava que todos eram amigos, mas o porteiro disse que os meninos "fizeram a festa" com as duas. E que a mãe de uma delas ligava na portaria cinco horas da manhã perguntando se ele sabia onde estava a filha dela, e que ele respondia "a sua eu não sei, mas a minha tá em casa". Como se mulher fosse bicho pra prender em casa!!!!!!! E ele ainda completou afirmando que já já uma delas aparece grávida, porque fica entrando nas obras com os meninos. Foi de doer o coração, os ouvidos e tudo! Eu só falei pra minha mãe "mas dos meninos ninguém fala né?, São Carlos/SP.

“[a experiência mais marcante] foi terminar um relacionamento de quase 3 anos porque a família do meu ex dizia que mulher não tem que estudar, tem é que casar...e eu tinha entrado na faculdade.۞, Bauru/SP.



5) Sobre ser lésbica. 

A violência contra a mulher tem inúmeras facetas: e uma delas tem a ver com o ser lésbica.
Certa invisibilidade parece rondar o universo lésbico, uma invisibilidade nociva. 

"Uma vez eu e minha namorada fomos a um restaurante japonês e pedimos um rodízio da promoção para casal. Na hora de pagar a conta, o garçom disse que o dono do estabelecimento não aceitava casais homossexuais como casal. Reivindicamos nossos direitos e eles disseram aceitar pelo fato do dono não estar presente e para não haver nenhum tipo de transtorno. Nunca mais voltamos ao local". , Ribeirão Preto/SP.

Existe um ponto especificamente difícil: a crença de que o casal lésbico existe com a função de servir de fantasia sexual para o homem.
Homem: você realmente acha que o mundo gira em torno do seu umbiguinho, né, bem? 
Então, não.

“[o que acontece sempre de dizerem] Você é muito bonita pra ser lésbica. E sempre perguntam do a três. É foda. É o tempo todo. Se eu falar o que aconteceu comigo semana passada vocês não vão acreditar também. Esse foi inédito e eu achei um dos mais agressivos: um menino, supostamente meu amigo, me falou que não consegue entender como alguém gosta do mesmo sexo porque o cérebro não gosta do igual. O cérebro gosta da novidade, da curiosidade. Ele quis me explicar com ciência que era impossível. Tipo, qual o problema dessas pessoas? Ele falou que duas mulheres juntas já conhecem todo o corpo da outra e não tem graça. Não é novo, não há descobertas. E ainda falou que mesmo que usássemos brinquedinhos ia ser algo q não é natural e o corpo só gosta do que é natural. Você acredita que eu sou obrigada a ouvir isso?” , Bauru/SP.

“[acontece sempre]de mandarem a gente beijar para provar que somos namoradas também. Sempre falam pra gente se beijar e continuam dando em cima mesmo sabendo que namoramos. Não respeitam. , Ribeirão Preto/SP.


O que queremos sinalizar é que estamos esgotadas, e permanecemos unidas para desconstruir tudo isso. Exigimos respeito e igualdade, não aceitamos mais essas violências. Embora as tentativas de nos silenciar sejam bastante agressivas, estamos firmes!

Encerrando a conversa e representando muito bem como nos sentimos:

Andar na rua é foda. De repente você fica surda. Você não ouve mais quando um amigo passa por você e buzina, ou quando um carro quer chamar a sua atenção para um perigo, porque buzina é quase sempre uma agressão e você não quer mais ouvir agressões. Você machuca seus tímpanos com música altíssima nos fones, e não adianta porque os olhares são suficientes para intimidar. Você deixa de sorrir, porque sorrir ~incita~ agressões que a deixam para baixo. Mas descobre que não sorrir também. Você deixa de sair de casa porque "está tarde", mas é sempre tarde para quem é mulher. Você passa calor porque roupa curta é ~justificativa~ de agressão. Descobre que roupas ~comportadas~ também são, porque independe da roupa o problema é o genêro. Você deixa de ouvir, deixa de vestir, deixa de caminhar, deixa de existir. Você só não é deixada em paz.” , Manaus/AM.


*Usamos símbolos no lugar de nossos nomes nos relatos, porque temos medo. Sabe qual a razão de termos medo? Nossos agressores não são como o bicho papão ou o homem do saco - distantes e invisíveis. Eles são nossos chefes, nossos primos, namorados ou amigos. Nossos orientadores, vizinhos, porteiros de nosso prédio. E sabe o que mais? Se você pratica qualquer tipo de violência, como as citadas aqui, por exemplo, você é agressor. Desculpa te contar assim, beijos.




terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Síndrome de Asperger, parte 1: olhando de fora.

Quis escrever sobre Síndrome de Asperger, mas achei que seria um pouco estranho expor só meu ponto de vista sobre uma coisa que nunca vivenciei. Nunca fui Asperger.
Esta é a razão pela qual este post será constituído de duas partes: este texto aqui, com um olhar de fora, e o próximo com um olhar de dentro. Assim fica melhor. 

Síndrome de Asperger: qual é sua história?

Em 1943 Leo Kanner, um médico que morava nos Estados Unidos, observou 11 crianças que passaram pelo seu consultório e percebeu que elas possuíam algumas características em comum. Ele as descreveu, em seus trabalhos, como crianças com "transtornos autistas". 

Um pouquinho depois, em 1944, um pediatra vienense chamado Hans Asperger começou a observar e estudar o que chamou de "psicopatia autística". Seu trabalho permaneceu restrito à língua alemã por muito tempo, sendo conhecido só a partir dos anos 1980 pelo mundo.  

Tanto Leo Kanner quanto Hans Asperger descreveram crianças parecidas: apresentavam interesses e comportamentos altamente específicos e dificuldades na socialização
Mais tarde, o autismo descrito por Kanner seria conhecido como "autismo clássico" e o descrito por Asperger como "Síndrome de Asperger".
Qual a diferença?
Vamos ver.
Leo Kanner
Hans Asperger
Para que os médicos possam diagnosticar os pacientes existem livros que indicam os nomes das doenças, seus sintomas, características principais. No caso da saúde mental, há dois manuais importantes: o CID 10 (Código Internacional de Doenças) e o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). 

Eles são atualizados de tempos em tempos com novas informações.
O DSM 4 foi utilizado até o ano de 2013  e nele, assim como no CID 10, aparecia a Síndrome de Asperger como "um transtorno muito semelhante ao autismo, com a apresentação de repertórios de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo, mas diferenciando-se pela ausência de deficiência de linguagem ou cognitiva."

Sendo assim, a Síndrome de Asperger foi utilizada por muitos anos para descrever pessoas que...
• Tinham dificuldades na socialização (conversar com os outros, fazer contato visual, compreender algumas expressões linguísticas)
• Tinham interesses muito específicos por alguns assuntos restritos
• Tinham movimentos estereotipados ou repetitivos.
...mas que, diferentemente do autismo clássico, tinham desenvolvimento de linguagem e inteligência preservado.

Edições do DSM até 2013

Décima Edição do CID

O que é Asperger hoje?

Em 2013 foi lançado um novo manual DSM: a edição número 5, e ele veio com uma novidade: o Transtorno do Espectro Autista. É um nome difícil, mas vamos entendê-lo: esta faixa colorida pode ser vista como um espectro, todas as cores estão em uma mesma linha, mas cada uma é de um jeito.

O Transtorno do Espectro Autista também é assim: existem coisas em comum entre as pessoas que se enquadram neste diagnóstico, mas cada uma tem suas particularidades.  
O tal DSM 5 fala que: "As características essenciais do transtorno do espectro autista são prejuízo persistente na comunicação social recíproca e na interação social  e padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades. Esses sintomas estão presentes desde o início da infância e limitam ou prejudicam o funcionamento diário. Manifestações do transtorno também variam muito dependendo da gravidade da condição autista, do nível de desenvolvimento e da idade cronológica; daí o uso do termo espectro. O transtorno do espectro autista engloba transtornos antes chamados de autismo infantil precoce [...] e transtorno de Asperger."

Isso significa que, a partir do uso deste novo manual, as pessoas antes diagnosticadas com Síndrome de Asperger agora são diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista.

O manual também divide este espectro em "níveis de gravidade", e neste caso, muito possivelmente quem antes era chamado Asperger passará a ser classificado como de "Gravidade 1", o que significa que "Exige Apoio". 

O nível 1 de gravidade diz que: "Na ausência de apoio, déficits na comunicação social causam prejuízos notáveis. Dificuldade para iniciar interações sociais e exemplos claros de respostas atípicas ou sem sucesso a aberturas sociais dos outros. Pode parecer apresentar interesse reduzido por interações sociais.". E que "Inflexibilidade de comportamento causa interferência significativa no funcionamento em um ou mais contextos. Dificuldade em trocar de atividade. Problemas para organização e planejamento são obstáculos à independência."

Agora que já entendemos como a psiquiatria nomeia e classifica, vamos olhar de outro ponto de vista.

O famoso DSM 5

Questões embaraçadas 

1. DSM e CID
Embora possa parecer muito interessante a ideia de ter um manual onde as doenças são classificadas, se pensarmos um pouquinho mais, vemos que não é tão doce assim.

Faça uma experiência: leia algumas páginas do DSM. Com certeza você vai se encaixar em pelo menos uma doença (ou psicopatologia, que é o nome chique). Estão descritos ali sintomas que vão desde a tristeza até o hábito de discordar de tudo. Difícil escapar.
E o problema disso é o uso irresponsável: diagnósticos precoces e sem aprofundamento, prescrição abusiva de remédios (que é altamente lucrativa para a indústria médica e para a indústria farmacêutica).

Tem outra: o rótulo. É muito comum que após uma pessoa receber um diagnóstico passe a ser restrita àquele rótulo. Não importa se ela é a Ana, bem humorada, boa em desenhos com tintas guaches e boa nadadora. Ela passa a ser a Asperger da sala. Não importa se Victor é bom escritor, dá ótimos conselhos e gosta de ler. Ele passa a ser o Asperger da família.
Os manuais focam nas dificuldades, deficiências, "anormalidades".

Por isso cabe a nós - todos e todas nós - fazer uso consciente desses materiais.

2. Mudando de ideia
"Ana é Asperger, por isso deve ser tratada".

O que você acha dessa frase?
Parece boa. Ouvimos essa e outras muito parecidas o tempo todo. 
A ideia contida nessa frase é: uma pessoa é deficiente e deve ser cuidada.

Mas vejamos por este ponto de vista:
As deficiências só possuem esta conotação negativa porque estão inseridas em um meio que atribui a elas desvantagens. 
O mundo é organizado para pessoas sem deficiências: os livros, as ruas, o currículo escolar, os padrões comportamentais vistos como adequados.

Se não houvesse construções sociais tão engessadas em padrões, o Asperger não significaria uma desvantagem social tão grande (e isso se aplica às outras deficiências).

Por isso nosso foco de tratamento deve ser ampliado para o meio em que as pessoas diagnosticadas vivem, as pessoas com quem convivem, que as educam, cuidam, formam. Para o olhar que a sociedade tem sobre padrões, curvas, conceitos. A mentalidade deve passar do "uma pessoa é deficiente" para "nós somos deficientes para recebê-la adequadamente". 

Melhor, então, seria: "Ana é Asperger, por isso ela, sua família, seus professores, seus colegas, devem ser acompanhados para melhor acolhê-la com suas particularidades".

(Aliás, este é outro ponto interessante: temos a mania de achar que somente as pessoas com deficiências tem particularidades. Mas o que é isso? As pessoas sem deficiência também tem ritmos diferentes de aprendizagem, habilidades sociais adequadas e inadequadas, facilidades e déficits. Só que elas não tem o rótulo. Se tiver com um tempinho livre, assista este vídeo para ilustrar o que estou falando: https://www.youtube.com/watch?v=P_X500l2rhQ)

3. Como devo chamar?

Então, devemos continuar usando o termo Asperger? Oficialmente esse nome nem existe mais. E será que ele não contribui para rotular e estigmatizar?

Para algumas abordagens da psicologia, como a análise do comportamento, mais importante que o nome, Asperger, seria o conjunto de comportamentos que aquela pessoa apresenta. Parte-se da ideia que os comportamentos seguem os mesmos princípios - no desenvolvimento típico ou no atípico, por isso embora o nome Asperger indique algumas coisas, o foco seria o conjunto de comportamentos do indivíduo em questão.

Concluiria, então, que: se o importante são os comportamentos, as análises de contingências específicas; e se o rótulo é utilizado para estigmatizar as pessoas, a melhor saída seria diminuir o uso do termo Asperger.

Tem um porém.
Há algumas semanas entrei em um grupo do facebook de pessoas com Síndrome de Asperger para solicitar ajuda para minha pesquisa de mestrado. Lá pude observar um movimento muito interessante. Algo como "Vocês também se sentem dessa forma nesta situação?", "Vocês conseguiram acesso a tais e tais direitos dos Asperger"?, "Eu fiz isso de tal maneira, como vocês fazem?", "O que vocês imaginam para seu futuro?", e etc. 
Descobri que existe um apelido, "Aspie". 
Naquele espaço eles/as trocam informações, angústias, opiniões, discutem, se apoiam. Ali, sou chamada NT (neurotípica). Eu os nomeio, eles me nomeiam de volta.

Aquele é um espaço de acolhimento no qual podem reclamar dos psicólogos que não compreendem, dos psiquiatras, dos remédios, dos familiares. De todos os que desconsideram suas potencialidades. Podem se unir,  sentir sua força.

O nome Asperger, a identificação Aspie, podem ser empoderadores
Por isso acredito ser necessário pensar duas vezes antes de substituí-lo.

Questões interessantes

Existem materiais que abordam esta temática, mas muitos são elaborados de forma acadêmica e acabam não chegando aos familiares, educadores e profissionais que convivem com Asperger em seu dia-a-dia.
Ontem li um artigo*, da Silvia Ester Orrú que traz algumas dicas para educadores em uma linguagem compreensível. Elas parecem simples, mas são de ouro:

• O professor deve procurar preparar o aluno com certa antecedência quanto a mudanças significativas de rotinas já programadas e conhecidas por ele na classe. É importante que o aluno aprenda também a lidar com elas e, a saber, que nem sempre aquilo que estava previsto acontecerá. [...] será necessário desenvolver um aprendizado de desapego a tal rotina, trazendo-o para a realidade de que nem sempre tudo é possível naquele instante [...] o que lhe aumentará o autocontrole e a autonomia em suas atividades. Logo, a agenda deve ser um instrumento de apoio e de organização.

• Construir regras [...] faz parte de nossas vidas. O importante é que elas sejam explicadas em detalhes, pois uma das características deste aluno é entender ao pé da letra. É importante para esse aluno aprender que, embora as regras sejam construídas e, preferentemente, construídas juntamento com toda classe, é possível haver exceções em seu cumprimento.

• Não há dúvidas de que aprendemos melhor quando fazemos aquilo que nos interessa. Com esse aluno não é diferente. Tirar proveito de seus temas de interesse canalizando-os para o processo de aprendizagem é o ideal [...] Trabalhar com os temas de interesse próprios é também contribuir para que o aluno construa significados permanentes e duradouros em seu processo de aprendizagem.

• Todas as pessoas, independentemente de terem ou não alguma necessidade especial, aprendem melhor por meio de uma linguagem de fácil acesso e com exemplos fundamentados em atividades concretas e circunstâncias reais. Evitar o que é dúbio é ótimo para todo e qualquer tipo de aluno.

• Muitos professores se preocupam e perguntam "Como é que eu devo ensinar ao meu aluno?". Costumo dizer que é melhor perguntar: "Como é que meu aluno aprende?". Partir do conhecimento já adquirido e construir esquemas e estratégias didáticas [...] pode ser de grande utilidade.

Dicas de materiais que abordam o tema

Material para pais:

• Kit para pais que receberam o diagnóstico do/a filho/a: foi publicado por uma instituição estrangeira chamada Autism Speaks, e traduzido para o português. Para baixar é só acessar o link: http://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/view/2549


Filmes

• Mary e Max (2010): Mary Daisy Dinkle (Toni Collette) é uma menina solitária de oito anos, que vive em Melbourne, na Austrália. Max Jerry Horovitz (Philip Seymour Hoffman) tem 44 anos e vive em Nova York. Obeso e também solitário, ele tem Síndrome de Asperger. Mesmo com tamanha distância e a diferença de idade existente entre eles, Mary e Max desenvolvem uma forte amizade, que transcorre de acordo com os altos e baixos da vida.

• Rain Man (1988): Charlie Babbitt espera receber uma grande herança após a morte de seu pai, a quem ele não vê há anos. Mas Raymond (Dustin Hoffman), seu irmão mais velho, internado em uma instituição médica, alguém cuja existência Charlie ignorava até então, é quem recebe toda a fortuna. Raymond é um “autista sábio” com habilidades seriamente limitadas em algumas áreas, mas com capacidade de gênio em outras. Quando Charlie rapta Raymond, a longa e maluca viagem atravessando o país, rumo a Los Angeles, ensina a ambos algumas lições sobre a vida.

• Loucos de amor (2005): Donald Morton (Josh Hartnett) e Isabelle Sorenson (Radha Mitchell) têm da síndrome de asperger. Donald trabalha como motorista de táxi, adora os pássaros e tem uma incomum habilidade em lidar com números. Ele gosta e precisa seguir um padrão em sua vida, para que possa levá-la de forma normal. Entretanto, ao conhecer Isabelle em seu grupo de ajuda tudo muda em sua vida.

• Adam (2009) Adam, um rapaz com síndrome de asperger, é apaixonado por astronomia, e passa a morar sozinho após a morte do pai. Tem um único amigo para apoiá-lo, Harlan. O filme trata do seu relacionamento com uma nova vizinha, a professora Beth. Foi premiado no Sundance Film Festival e no Method Fest Independent Film Festival do ano seguinte.

• Temple Grandin (2010): É baseado no livro Uma Menina Estranha, da própria Temple, uma mulher com autismo que acabou se tornando uma das maiores especialistas do mundo em manejo de gado e planejamento de currais e matadouros



Livros

• Olhe nos meus olhos (2008). Autor: John Elder Robison.


Vídeo
• Documentário MTV Autismo: https://www.youtube.com/watch?v=mNab1gzIy1o

Artigos
• Síndrome de Asperger: Revisão de Literatura. 
• Autismo e Síndrome de Asperger: uma visão geral. 
• *Síndrome de Asperger: aspectos científicos e educacionais. 
• Intervenções Terapêuticas em pessoas com Síndrome de Asperger: uma revisão de literatura. 



Leitura MUITO prazerosa. Melhor descrição de Asperger que já vi.